Quinta-feira, 18 de Dezembro de 2008

63- Três crianças no quartel

(continuação de 62- Os meus olhos já iam vendo esta terra de uma forma diferente)

 

Durante dois ou três dias tive febres altas e fiquei bastante debilitado. Tinha sido apanhado pelo paludismo.
Com o imenso frio, as terríveis alucinações e os delírios, percebi que a minha vida não valia nada sem a família, lembro-me de ter visto civis a circularem pelo quartel e de haver miúdos a brincarem na parada ou nas casernas dos soldados.
O Dr. Vilaverde acabou por me restabelecer rapidamente com meia dúzia de injecções, uns fortificantes e os habituais comprimidos de Resoquina, que também evitaram a repetição das febres.


Aquelas imagens da alucinação foram provavelmente um sinal ou uma mensagem que me levaram a acreditar e a insistir na vinda da minha mulher e do meu filho.


As minhas visões acabaram por se tornar realidade, e de tal forma que no mês de Agosto a população do quartel aumentou e melhorou com a presença de três senhoras, a esposa do Capitão, a minha e a do Alferes C., e de três crianças, o João Miguel, o João Carlos e a Catarina.


Para que as minhas visões ficassem completas, a minha mulher ainda trazia na sua bagagem o que faltava, o carinho, o amor, a alegria, a doçura e a ternura.
 

Foram dias felizes, que se escoaram ligeiros como é próprio dos bons momentos e das coisas boas.
 

Passaram anos, desde esses momentos. Mesmo assim, gosto de fazer as contas com o passado e de regressar aos sítios onde, além de tudo, também fui um pouco feliz.
Só para recordar, gosto de voltar aos locais onde melhorei, não para repetir os momentos, apenas para os reviver mesmo sendo de uma forma virtual, as paisagens, a luz, o cheiro da terra e aqueles espíritos da selva que me inspiraram e ajudaram a pensar melhor na vida, não para um pensamento imediato mas com ideias para um horizonte longínquo.
 

Viver no Alto Chicapa com a família, significou viver em território africano onde o ritmo do quotidiano é lento e calmo, mas onde há sempre coisas para ver e fazer, onde o tempo é gerido de maneira tranquila e menos angustiante do de hoje, onde se vive a tentarmos ser o que não somos e a perder energias com problemas menores ou artificiais.
A magia que se fazia sentir levava-nos a querer realizar vários passeios por uma natureza onde não havia medos.
No céu, havia sempre uma luz de um azul intenso, misturado com uma tonalidade violeta, típico das altitudes, que preenchia aquela paisagem com um misto de doçura e serenidade.
 

O povo tinha um carácter reservado, os contactos eram restritos e falavam muito pouco.

O problema mais grave, era o consumo da liamba e do álcool, este produzido a partir da fermentação do milho e da mandioca (cachipembe). Quando estavam embriagados, transformavam-se totalmente e até os próprios olhos pareciam diferentes, insultavam e reagiam muito mal, não conhecendo aqueles de quem se diziam amigos.
Ainda assim, atrevo-me a dizer que, quando sóbrios, eram simpáticos, genuínos e na amizade eram leais e transparentes.
 

 

Desde muito jovem, aprendi a ser independente e como filho único habituei-me a fazer quase tudo sozinho.

Porém, naquela época, a minha vida tinha mudado com o meu primeiro filho, o João Carlos e a minha mulher. Eu já não era o mesmo, precisava deles.
Gostava de o observar a correr despreocupado por tudo o que era sítio, e ver como tinha crescido desde as minhas férias, mas mantendo o ar doce e atrevido que lhe era característico.
Olhava-o com a mesma ternura que se tinha entranhado em mim no momento em que nasceu.
Caía, levantava-se logo, não precisava de ajuda e raramente chorava. Os soldados até lhe chamavam “O Fufuta”, nome de guerrilheiro.

 

Após um Natal feliz passado em família e entre militares, a U.N.I.T.A. guardou para o dia de Ano Novo do ano de 1974 um ataque a Sautar, uma aldeia que ficava muito perto de nós. Cortaram a cabeça a 36 nativos.
Depois dos últimos acontecimentos e do ressurgir da guerrilha às mãos de uma U.N.I.T.A. transformada, que esteve até aqui cinicamente calada e apoiada pelo nosso exército, a minha família regressou a Portugal.

 

Quis o destino, que o avião que nos levaria do Alto Chicapa a Henrique de Carvalho fosse abatido ou tivesse explodido após a saída da localidade do Lumege.
Sem transporte, para chegarmos a tempo ao avião que fazia a ligação entre Henrique de Carvalho e Luanda, valeu-nos a amabilidade do Sr. Capela, o comerciante local, que nos emprestou o seu velho jipe de caixa aberta, um Land-Rover e do meu comandante de companhia que emprestou um bidão com 200 litros de gasolina.
 

Saímos, quando começava a cair a noite. O ambiente era inexplicável e misterioso, com uma neblina muito baixa à mistura.

Tínhamos provas e informações que a guerra andava por ali, estava mais activa e ainda havia a desconfiança que alguns guerrilheiros estariam por perto do Alto Chicapa.

Achámos, mesmo assim, que não era preocupante, bastava-nos alguma informalidade na partida, um pouco de concentração no percurso, estarmos atentos e reagir imediatamente a qualquer sinal estranho.
Por questões de segurança e para prevenir o risco fomos bem armados e acompanhados por dois homens do meu grupo de combate, o Alberto e o Canelas.

Felizmente que as intensas chuvadas dos últimos dias não se fizeram sentir, mas o nevoeiro teimou em intensificar-se e a transformar-se na nossa maior dificuldade em todo o trajecto.
De noite, as picadas de terra batida e as pobres estradas de pouco alcatrão eram ainda piores, não havia marcações, a sinalização estava praticamente esquecida e a iluminação era inexistente. Quando se adivinhava um buraco já o carro estava aos saltos.
De um momento para o outro, sem saber bem porquê, parei.
Estava desconfiado, … a estrada de alcatrão tardava e o intenso nevoeiro continuava a ser um grande obstáculo. Quando saí daquela viatura, para observar melhor o terreno e a zona, assustei-me e não queria acreditar … já tinha atravessado a estrada alcatroada e tinha um imenso abismo na minha frente.
 

 

Nzambi e os espíritos da selva estiveram, uma vez mais, comigo.
 

Enfim, depois de um início muito atribulado, foi, apesar de tudo, um regresso seguro a Lisboa.
 

(a seguir - Epilogo / Destacamento)

 

publicado por Alto Chicapa às 14:12

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Sábado, 6 de Dezembro de 2008

56- Mudança no comando da Zona Militar Leste

(continuação de 55- Torneio de futebol)

 

A vida no quartel mantinha-se religiosamente igual, mês após mês. A região também continuava sem vestígios de movimentos hostis, no entanto uma mudança no comando da Z.M.L. (Zona Militar Leste) iria alterar o equilíbrio conseguido pela equipa do general Bettencourt Rodrigues.


Esta mudança, originou também uma visita ao nosso aquartelamento por altas patentes militares onde se incluía o senhor General Hipólito. Os preparativos foram levados ao extremo e de tal forma que até os soldados passaram a usar lençóis na cama, mas era só um, para, naquele dia, fazerem a cama à espanhola, e para o senhor General ver.

 


(fotografia cedida por Álvaro Marques) 

 

No dia do evento, reuniram-se na “parada” os militares presentes e outras entidades das quais não me recordo de nada.
De acordo com as normas, e depois de prestadas as honras militares, a patente mais alta em visita ao aquartelamento tomou a palavra e massacrou os nossos pobres ouvidos com banalidades, durante o que me pareceu uma eternidade.


Depois das cerimónias e já no momento do convívio informal perguntei a alguns soldados quais tinham sido as impressões.
Disseram-me:
- Falou, falou …
- Muita conversa …
- Chicalhada …
- Não percebi nada …
- Pelo menos vamos ter rancho melhorado!


A mudança no comando da Z.M.L. dá-se numa altura em que as tropas portuguesas estavam muito confiantes e descontraídas. Mesmo assim, a nossa actividade operacional não tinha abrandado embora todos nós soubéssemos que os grupos do M.P.L.A. e da F.N.L.A. estavam para lá da fronteira. Mas, as consequências não se fizeram esperar e as acções do IN começaram a aparecer, junto à fronteira, de formas ocasionais e curtas, mas muito traiçoeiras, violentas e com um elevado potencial de fogo.
Por exemplo, no itinerário Luvuei-Lutembo, montaram uma emboscada, causando 5 mortos e 32 feridos, com alguns muito graves, e a U.N.I.T.A. prevendo que a sua situação iria mudar, também tentou, embora sem êxito, ser reconhecida oficialmente pela ONU, no decurso da 22ª sessão do Comité de Libertação, em Mogadíscio.


O novo comando planeou para Janeiro de 1974 a operação Castor, com ataques violentos contra as bases da U.N.I.T.A. e a aniquilação da sua direcção.


Savimbi, com a ajuda de uma notícia saída no Jornal Expresso, teve conhecimento das intenções, perspectivou os possíveis cenários de guerra, e anunciou por escrito, em Setembro de 1973, a um amigo madeireiro da localidade de Cangumbe, situada a poucos quilómetros do Luso, o que se estava a passar e que iria pôr-se a mexer e rever o seu manual da guerrilha.


Entre Dezembro de 1973 e Janeiro de 1974, a U.N.I.T.A., sem aviso prévio, primeiro, ataca violentamente as tropas portuguesas, provocando muitas baixas, e de seguida as populações que lhe eram mais hostis, como por exemplo, a destruição da localidade de Sarieza no Bié e o corte de 36 cabeças, de homens, mulheres e crianças, na população de uma localidade que já não consigo precisar mas que ficava a cerca de 60 quilómetros do nosso aquartelamento.


Também havia duas flagelações programadas para o Alto Chicapa, sob a responsabilidade de um pequeno grupo de sete jovens, dividido em dois, que foram naturalmente “abortadas” por falta do objectivo principal, os militares no destacamento em António Cavula.
De madrugada, quando os atacantes se aperceberam do novo enquadramento militar na aldeia, desorganizaram-se, e por ausência de comando ficaram perdidos e sem iniciativa.
Dez horas fizeram a diferença e mudaram toda a estratégia de um ataque traiçoeiro pela madrugada e de uma emboscada criminosa, para uma vitória silenciosa, nossa, sem armas e sem heróis.


Ao P. (professor) e ao primo (monitor / enfermeiro), amigos sem cor, onde estiverem, bem hajam.
 

( a seguir - Mergulhos no rio)

 

publicado por Alto Chicapa às 14:28

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Domingo, 19 de Outubro de 2008

42- Operação "Pato 7212", primeiro dia

(continuação de 41- Os preparativos da operação "Pato 7212")


No primeiro dia, começámos por chegar ao local da largada, por volta das seis horas.

 

Depois de reconhecido o local, seguimos, em coluna, na direcção do primeiro objectivo ao longo de um antigo trilho.

 


Os carregadores desta operação (pagos pelo exército), eram três homens nativos da aldeia de Samuge. Um, com mais de 40 anos, o Sá Moço, o carregador de todas as minhas operações, em quem eu sempre confiei, e outros dois, que nunca eram os mesmos das operações anteriores, aparentavam ser muito jovens.


À frente, ia o meu cão Buda, um pastor alemão, muito desejado por todos e que actuava melhor do que um pisteiro da mata, num frenético vai e vem.

 

 

Logo a seguir, com distâncias de dois a três metros entre cada homem, ia o Freitas (quase sempre o primeiro), o Nuno, e eu, seguidos pelo restante pessoal. Entre cada furriel havia uma secção. Os carregadores eram espalhados aleatoriamente ao longo da coluna.


A progressão inicial fez-se com relativa facilidade até entrarmos na zona de floresta densa, precisamente uma das áreas assinaladas como de contacto iminente.


Estávamos próximos da nascente do rio Cassai, o nosso primeiro objectivo.


Saímos do trilho e passámos a caminhar em zonas de vegetação mais densa, com alguns movimentos de diversão e muitas vezes com a necessidade de abertura de caminhos.


Sabia que estávamos nas proximidades da zona do 3º batalhão da FNLA, de onde foram afastados em Julho de 1972, cerca de 70 guerrilheiros bem armados, em consequência da operação Rojão IH.
Neste tipo de locais onde a probabilidade de contacto com o IN era maior, os carregadores ficavam muito nervosos e medrosos e os mais inexperientes chegavam mesmo a fugir como nos aconteceu numa operação realizada entre um afluente do rio Chicapa e a nascente do rio Chiume.


Parámos ao princípio da tarde numa zona limítrofe da densa vegetação, muito próximo de uma linha de água que parecia ser suficiente para o nosso abastecimento.


Não havia vestígios de passagem de humanos.

Após tantas horas de marcha, tudo indicava que era o sítio certo para recuperar forças e para pernoitar.
 

Chamei o Sá Moço e perguntei-lhe:
- É bom?
- É bom mesmo, não tem turra!

 

O Sá Moço era uma força da natureza, que fiquei a admirar para o resto da minha vida. Nunca conheci ninguém assim. Não era um homem muito falador, mas percebia um pouco da nossa língua. Era honesto, amigo quanto baste, respeitador, inteligente e auto-suficiente.
Um autêntico sobrevivente.

 

Nunca precisou, de usar:

  • Fósforos ou isqueiro. Usava pauzinhos de fricção e uns fios de madeira parecidos com a corda de sisal;
  • Cordas. Encontrava-as em lianas e cascas de árvores;
  • Tenda. Criava os seus próprios abrigos com os materiais existentes no local;
  • Remédios. Encontrava-os entre folhas, raízes e cascas de árvore;
  • Sabão. Substituía-o por folhas e uma espécie de argila;
  • Escova de dentes. Usava um pequeno pau, que até deixava os dentes brancos;
  • Ração de combate. Encontrava tudo na mata, folhas, frutos, cogumelos, cágados, cobras, ratos, gafanhotos, formigas; e
  • Mapa de orientação. Conseguia orientar-se com quase tudo, inclusive com a estrutura do solo, e ainda, uma coisa incrível, com o voo de alguns pássaros.

Tinha sempre uma forma muito particular de estar. Reagia imediatamente às situações mais complicadas como um autêntico senhor e contava histórias inacreditáveis. Na mata, ao lado deste homem, eu era, apenas, um dependente de uma sociedade que nunca ensinou ninguém a sobreviver quando faltam certas mordomias.


Colocámos as sentinelas dois a dois, por períodos curtos. Limpámos a área e montámos com os panos de tenda um pequeno acampamento. Acordámos que, não faríamos fogo com fumo, evitávamos as conversas com barulho e não chamávamos o cão Buda.

 

 

Decidimos, que de manhã, iríamos bater a margem direita em círculo, mudar para lá o acampamento, ficar mais um dia e estar atentos a algum movimento no anterior local.


Hoje, estou convencido, com o vento a favor, se houvesse turras nas redondezas viriam a correr ter connosco, porque o cheiro a comida, das nossas latas da ração de combate depois de aquecidas, deveria espalhar-se por uma vasta área.
Lembrei-me da fuba a secar nas aldeias, uns bons quilómetros antes, já cheirava.


O Hamilton era o nosso, e impecável homem das transmissões. Nunca se esquecia das suas obrigações. Apenas gaguejava quando lhe aparecia o capitão em linha, e de tal forma ficava nervoso que nem a cantar conseguia falar. Francamente, poucas vezes me preocupei com este tipo de liderança imposta pelo medo.

 

Lembro-me do dia em que o Hamilton estava de serviço à porta de armas do quartel.

Quando passei, com a minha mulher, disse-me:
– Alferes, tenho aqui chouriço do puto.
Fazia o gesto, a abanar a mão direita metida nas calças e a agarrar um grande enchumaço. Fiquei meio atrapalhado com o gesto, mas também foi com espanto que o vi tirar do bolso uma grande chouriça.
– Alferes foi a minha mãe que enviou lá da terra, esta é para si.
 

Depois de um longo e nervoso dia numa região que tinha sido o refúgio da FNLA, até meados de 1972, descansei, como nunca, sobre um montão de folhas secas e na companhia de um cão que parecia nunca dormir.
 

Mesmo com muito frio, a noite passou-se bem.
 

(a seguir - Operação "Pato7212", segundo e terceiro dia)

 

publicado por Alto Chicapa às 12:45

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Quinta-feira, 31 de Julho de 2008

18- Entregues a nós próprios

(continuação de 17- Os maçaricos)

 

Em Abril de 1972, já estávamos entregues a nós próprios. Aproximava-se o final da época das chuvas (Outubro a Abril), uma das duas estações do ano em Angola, a outra é o cacimbo, a estação seca mas com grandes amplitudes térmicas.


No meu grupo, havia três furriéis com um grande sentido de equipa, muito dinâmicos, alegres e acima de tudo uns bons companheiros (camaradas como se dizia na tropa). Nos últimos 34 anos, mesmo com contactos e encontros regulares entre nós, quero, mesmo assim, recorda-los com amizade. Um bem-haja, ao Canossa (José Sousa Canossa), ao Gomes (Alfredo Carmo Gomes) e ao Santos (José Manuel Moreira Santos).

 


Quase todo o pessoal do meu grupo de combate estava solteiro.
Tinham idades entre os vinte e os vinte e dois anos. O único velhote no grupo, como diziam, era eu que já ia a caminho dos vinte e quatro anos.


A minha passagem por Sacassange foi penosa. Deixei por lá algumas lágrimas e angústias. Foi aí que senti as minhas primeiras revoltas e consequentemente uma lenta e difícil adaptação.


Diariamente, fazíamos a protecção às máquinas, aos trabalhos e aos empregados da empresa Tecnil que abria a estrada, Luso / Lucusse, da JAEA (Junta Autónoma das Estradas de Angola).


Naquela guerra de protecção o nosso dia-a-dia era mais do que conhecido, desde as deslocações, aos horários, às posições no terreno, ao número de elementos que compunham o grupo e ao armamento disponível, tudo era previsível e conhecido.


Chamavam-nos, a tropa macaca.


A nossa interligação com as pessoas e com a organização dos trabalhos era normalmente nula.


As posições que ocupávamos na mata ou junto à picada iam mudando rotineiramente conforme o avançar das frentes de trabalho.
No dia seguinte todos sabiam os locais por onde a tropa ia passar ou se iria instalar novamente.

 


Bem, estávamos a ajudar as populações e a fazer protecção militar a um troço de via asfaltada de uma grande rede de estradas no Leste de Angola, uma envolvente da Zona Militar Leste, em áreas de pobres recursos materiais e de fraca ocupação humana, ligando Malange, Silva Porto, Serpa Pinto, Neriquinha, Gago Coutinho, Luso, Dala, Henrique Carvalho, Veríssimo Sarmento e Portugália, numa extensão de mais de 2.000 kms.


A par deste itinerário principal, era do nosso conhecimento que ainda estavam projectados itinerários secundários, com cerca de 2.500 kms, a ligar à estrada principal:
• Da Lunda, por Henrique de Carvalho, Nova Chaves e Teixeira de Sousa;
• Do Moxico, por Silva Porto e Gago Coutinho;
• Do Cuando-Cubango;
• Do Cubango;
• Do Cuito; e
• Do Guando, por Gago Coutinho.

 

Além destas vias alcatroadas, o Comando da ZML (Zona Militar Leste) tinha proposto a construção de mais duas estradas militares:
• Alto Chicaga - Cangumbe (+/- 130 kms); e
• Umpulo - Mumbué (+/- 150 kms).

 

Percebia-se que esta rede, de vias, num total de mais de 4.000 kms, era importante para o desenvolvimento da região e uma valiosa ajuda nas deslocações militares. Diminuíam o perigo das minas, proporcionavam mais meios contra a guerrilha e vantagens óbvias para a manobra militar.
 

Neste ano, estavam a trabalhar no Leste de Angola cinco empresas com a capacidade de construção anual de 1000 km de estrada asfaltada.
 

Nós, os militares, colaborávamos na defesa das pessoas e dos trabalhos de construção da estrada até ao Lucusse numa zona muito complicada e lado a lado com um corredor de passagem de guerrilheiros do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) vindos da Zâmbia, com passagem pelo Cacolo, e em direcção ao Norte de Angola.

 

 

Eram conhecidos e estavam identificados 3 esquadrões na zona, o Voina, o Vitória e o Sakembo (1 esquadrão tinha 100 a 150 efectivos).
Chamavam-lhe a Rota do Luena ou Agostinho Neto.

 


Neste cenário de guerra do Leste de Angola, onde três movimentos de independência lutavam pela hegemonia na região, acordou-se numa estratégica e tacitamente num pacto de não agressão entre o exército e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola). Esta medida também ajudou as NT (nossas tropas) e as operações militares, que foram especificamente preparadas para enfraquecer os outros dois movimentos, FNLA e MPLA, e faze-los recuar o mais possível para a fronteira prevista para a retirada, a Zâmbia. Chamavam-lhe o acordo dos madeireiros e segundo diziam, teria sido iniciado em 1969/70 pelo Dr. Jonas Savimbi, os Generais Costa Gomes e Bettencourt Rodrigues e um grupo de madeireiros com interesses na zona.

 


O pessoal afecto à construção da estrada demonstrava em cada momento pouca amizade e tolerância pela tropa. Organizava a seu dia a dia como muito bem lhe apetecia e sempre em função de meios próprios. Não tinham problemas com as deslocações, com as horas e ignoravam a nossa protecção. Estas atitudes nunca foram uma surpresa para mim, pois estava informado e avisado que alguns faziam a agulha para os dois lados.

 

A maior parte dos trabalhadores e capatazes eram oriundos de Angola, da metrópole e de Cabo Verde. Tinham um nível cultural muito baixo e eram, em minha opinião, muito pobres de sentimentos.


Sabia que não podia contar com eles e que a confiança teria de ser calculada e reduzida.
 

É certo que também não os conhecia bem, mas pelo que observava diariamente tinha razões para continuar a duvidar do seu comportamento relativamente ao exército.


Por todos os motivos, a nossa missão era muito ingrata, estávamos numa guerra de posição, presos no quartel, no destacamento ou estacionados na mata junto à picada. Estávamos diariamente à mercê da surpresa e também éramos alvos fáceis dos guerrilheiros que se movimentavam como queriam e com o conhecimento das florestas que nos rodeavam.
 

publicado por Alto Chicapa às 11:08

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Segunda-feira, 7 de Julho de 2008

15- Atirados para um comboio

(continuação de 14- A partida para o Leste de Angola)


Depois, fomos atirados para um comboio que nos levaria até ao Luso.


Foram quase dois dias em carruagens / vagões miseráveis criados à boa maneira inglesa para pessoas do terceiro mundo.


Eram os chamados Caminhos de Ferro de Benguela.


Viajámos no "Mala" dos CFB comboio de passageiros e correio rumo ao leste, (diziam que ainda havia o "Camacove", para mercadorias e para indígenas), cruzámos Bela Vista, Chinguar, e Silva Porto, onde fizemos uma paragem, prosseguindo viagem já noite dentro até Munhango, Cangumbe e Luso.

 

 


Falava-se que no Munhango teria nascido o Chefe do Galo Negro (UNITA), Jonas Savimbi e que os ataques poderiam acontecer a qualquer momento.

 


As carruagens com bancos de madeira, alguns longitudinais iam com lotação a mais, em grandes molhos de corpos, de braços, de pernas, de armas e de porcaria (líquidos de odor duvidoso, restos de latas de conserva e outros detritos espalhados pelo chão).


Com o calor, tudo isto dava a volta às tripas e de tal forma que o meu cão, que dava pelo nome de “buda” (um pastor alemão), deixou de se alimentar.


A viagem estava a ser lenta, impessoal e sem um mínimo de dignidade.

 

Praticamente não havia contactos com os nossos superiores.
 

Num determinado troço do percurso, a seguir à Vila de Cangumbe e até à povoação de Chicala, ainda a algumas horas da chegada ao Luso, foi necessário redobrar a segurança. Havia a possibilidade do comboio ser alvejado ou de haver minas colocadas na linha.
 

Finalmente, depois de muito cansaço, da permanente falta de higiene e da fome acumulada, chegamos ao Luso.


Aí comi uma refeição (paga do meu bolso) que ainda hoje consigo ver na mesa. Era um bife, um grande bife com batatas fritas, três ovos estrelados e uma garrafa de vinho verde Gatão.
 

publicado por Alto Chicapa às 14:41

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