Domingo, 19 de Outubro de 2008

42- Operação "Pato 7212", primeiro dia

(continuação de 41- Os preparativos da operação "Pato 7212")


No primeiro dia, começámos por chegar ao local da largada, por volta das seis horas.

 

Depois de reconhecido o local, seguimos, em coluna, na direcção do primeiro objectivo ao longo de um antigo trilho.

 


Os carregadores desta operação (pagos pelo exército), eram três homens nativos da aldeia de Samuge. Um, com mais de 40 anos, o Sá Moço, o carregador de todas as minhas operações, em quem eu sempre confiei, e outros dois, que nunca eram os mesmos das operações anteriores, aparentavam ser muito jovens.


À frente, ia o meu cão Buda, um pastor alemão, muito desejado por todos e que actuava melhor do que um pisteiro da mata, num frenético vai e vem.

 

 

Logo a seguir, com distâncias de dois a três metros entre cada homem, ia o Freitas (quase sempre o primeiro), o Nuno, e eu, seguidos pelo restante pessoal. Entre cada furriel havia uma secção. Os carregadores eram espalhados aleatoriamente ao longo da coluna.


A progressão inicial fez-se com relativa facilidade até entrarmos na zona de floresta densa, precisamente uma das áreas assinaladas como de contacto iminente.


Estávamos próximos da nascente do rio Cassai, o nosso primeiro objectivo.


Saímos do trilho e passámos a caminhar em zonas de vegetação mais densa, com alguns movimentos de diversão e muitas vezes com a necessidade de abertura de caminhos.


Sabia que estávamos nas proximidades da zona do 3º batalhão da FNLA, de onde foram afastados em Julho de 1972, cerca de 70 guerrilheiros bem armados, em consequência da operação Rojão IH.
Neste tipo de locais onde a probabilidade de contacto com o IN era maior, os carregadores ficavam muito nervosos e medrosos e os mais inexperientes chegavam mesmo a fugir como nos aconteceu numa operação realizada entre um afluente do rio Chicapa e a nascente do rio Chiume.


Parámos ao princípio da tarde numa zona limítrofe da densa vegetação, muito próximo de uma linha de água que parecia ser suficiente para o nosso abastecimento.


Não havia vestígios de passagem de humanos.

Após tantas horas de marcha, tudo indicava que era o sítio certo para recuperar forças e para pernoitar.
 

Chamei o Sá Moço e perguntei-lhe:
- É bom?
- É bom mesmo, não tem turra!

 

O Sá Moço era uma força da natureza, que fiquei a admirar para o resto da minha vida. Nunca conheci ninguém assim. Não era um homem muito falador, mas percebia um pouco da nossa língua. Era honesto, amigo quanto baste, respeitador, inteligente e auto-suficiente.
Um autêntico sobrevivente.

 

Nunca precisou, de usar:

  • Fósforos ou isqueiro. Usava pauzinhos de fricção e uns fios de madeira parecidos com a corda de sisal;
  • Cordas. Encontrava-as em lianas e cascas de árvores;
  • Tenda. Criava os seus próprios abrigos com os materiais existentes no local;
  • Remédios. Encontrava-os entre folhas, raízes e cascas de árvore;
  • Sabão. Substituía-o por folhas e uma espécie de argila;
  • Escova de dentes. Usava um pequeno pau, que até deixava os dentes brancos;
  • Ração de combate. Encontrava tudo na mata, folhas, frutos, cogumelos, cágados, cobras, ratos, gafanhotos, formigas; e
  • Mapa de orientação. Conseguia orientar-se com quase tudo, inclusive com a estrutura do solo, e ainda, uma coisa incrível, com o voo de alguns pássaros.

Tinha sempre uma forma muito particular de estar. Reagia imediatamente às situações mais complicadas como um autêntico senhor e contava histórias inacreditáveis. Na mata, ao lado deste homem, eu era, apenas, um dependente de uma sociedade que nunca ensinou ninguém a sobreviver quando faltam certas mordomias.


Colocámos as sentinelas dois a dois, por períodos curtos. Limpámos a área e montámos com os panos de tenda um pequeno acampamento. Acordámos que, não faríamos fogo com fumo, evitávamos as conversas com barulho e não chamávamos o cão Buda.

 

 

Decidimos, que de manhã, iríamos bater a margem direita em círculo, mudar para lá o acampamento, ficar mais um dia e estar atentos a algum movimento no anterior local.


Hoje, estou convencido, com o vento a favor, se houvesse turras nas redondezas viriam a correr ter connosco, porque o cheiro a comida, das nossas latas da ração de combate depois de aquecidas, deveria espalhar-se por uma vasta área.
Lembrei-me da fuba a secar nas aldeias, uns bons quilómetros antes, já cheirava.


O Hamilton era o nosso, e impecável homem das transmissões. Nunca se esquecia das suas obrigações. Apenas gaguejava quando lhe aparecia o capitão em linha, e de tal forma ficava nervoso que nem a cantar conseguia falar. Francamente, poucas vezes me preocupei com este tipo de liderança imposta pelo medo.

 

Lembro-me do dia em que o Hamilton estava de serviço à porta de armas do quartel.

Quando passei, com a minha mulher, disse-me:
– Alferes, tenho aqui chouriço do puto.
Fazia o gesto, a abanar a mão direita metida nas calças e a agarrar um grande enchumaço. Fiquei meio atrapalhado com o gesto, mas também foi com espanto que o vi tirar do bolso uma grande chouriça.
– Alferes foi a minha mãe que enviou lá da terra, esta é para si.
 

Depois de um longo e nervoso dia numa região que tinha sido o refúgio da FNLA, até meados de 1972, descansei, como nunca, sobre um montão de folhas secas e na companhia de um cão que parecia nunca dormir.
 

Mesmo com muito frio, a noite passou-se bem.
 

(a seguir - Operação "Pato7212", segundo e terceiro dia)

 

publicado por Alto Chicapa às 12:45

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Quinta-feira, 9 de Outubro de 2008

38- Missão humanitária

(continuação de 37- Primeiro passeio pelo exterior)

 

A minha primeira saída em missão, foi humanitária. Aconteceu ao princípio de uma noite do mês de Outubro de 1972, mas de um dia que já não consigo identificar no calendário.


Um homem da aldeia de Samuchima solicitou ao comandante de companhia ajuda urgente para socorrermos uma mulher que estava em trabalho de parto há demasiado tempo, no meio de grande sofrimento e preocupação dos familiares.


Fui num jipe Williams bem velhinho na companhia de um condutor e do enfermeiro Luís.

 


Pelo caminho o enfermeiro Luís dizia que nunca tinha feito ou ajudado num parto nem tinha material próprio. Perguntei-lhe: - E porquê um alferes miliciano de minas e armadilhas?


Mesmo assim, senti-me na obrigação de tentar o melhor, com a ajuda e os conhecimentos do enfermeiro, e assistir pela primeira vez na minha vida a um parto natural, sem condições de higiene e conforto.

 


Quando chegámos, já era noite escura, e o ambiente não era nada simpático.

 

Tudo estava a acontecer numa palhota pequena de chão térreo, em cima de uma esteira e à luz de um escuro candeeiro de petróleo.

 

Havia muitas mulheres de volta em grande ladainha. O pai da criança já tinha fugido com medo das represálias da família da mulher.


- Luís, acho que só fomos chamados para aqui em desespero de causa.
- Bem, temos que fazer alguma coisa para melhorar isto!
- Vou pedir para que estas mulheres se afastem um pouco e com os faróis do Jipe, junto à porta, vai haver mais luz lá para dentro.
 

O Luís tomou a iniciativa e dirigiu-se à jovem parturiente. Vendo que no local havia cinza, terra e excremento de cabra espalhados, solicitou a duas mulheres que estavam com ela um pouco mais de limpeza no local e tratou de a desinfectar o melhor possível.
Com os dedos das mãos, (não havia luvas) tentámos “alargar e abrir espaço” para a criança nascer com mais facilidade. Mas tudo correu mal, mesmo com a muita coragem daquela mãe.
 

Aquele filho não queria nascer.
 

- Luís, na faculdade falava-se em partos provocados com soro, vamos tentar?
- Pela manhã logo se vêm os resultados!
 

Informei o chefe da aldeia e as mulheres das nossas intenções, do regresso ao quartel e do que estava feito. Pedi, para ajudarem a futura mãe numa situação grave ou quando a criança estivesse mesmo para nascer.


No povo quioco, logo que uma mulher sente os primeiros sintomas do parto, pede à mãe ou a outra mulher da família que chame a parteira (tchifungudji) e todas as mulheres que já tiveram filhos, para que auxiliem em tudo o que for necessário.
Os homens, as crianças e ainda as mulheres que tiveram relações sexuais no dia anterior não podiam assistir ao parto.


A parturiente senta-se numa esteira costas com costas com uma outra mulher, a ajudante, que lhe entrelaça os braços prendendo-a contra si. A parteira fica sentada em frente a dar continuadamente instruções.


Conforme me contaram, depois do nascimento, mais ninguém pode mexer na criança, só a ajudante e a parteira lhe podem pegar. Cortam e atam o cordão umbilical, lavam-na em água morna e entregam-na definitivamente à mãe. Esta recebe um copo de água para beber e borrifar o filho, dizendo, mais ou menos isto, para que fiques bonito e forte. No dia seguinte, há uma espécie de baptismo imunizante, que é feito por todas as crianças da aldeia com raízes, que esfregam na criança, afastando assim todos os feitiços e os males. É a partir deste momento que qualquer outra mulher poderá pegar na criança (continuam a ficar de fora as mulheres com relações sexuais efectuadas no dia anterior, porque são consideradas impuras).


Ao terceiro dia, é feriado na aldeia e dia de festa. A parturiente lava-se no rio, na altura mais quente do dia, pedindo à água que lhe dê forças e frescura. É neste dia que o pai dá um nome ao filho. O nome pode ser o de um seu antepassado, de um amigo ainda vivo, ou de um acontecimento importante que se tenha passado no dia do nascimento. Além do nome dado pelo pai ainda pode ter outro dado pela mãe, pela família desta ou pelo chefe da aldeia.
Logo que o filho recebe o nome, os pais acrescentam ao seu, o do filho, precedido de Sá, no pai, e de Ná, na mãe.
No entanto, só no acto da circuncisão, nos rapazes, ou da iniciação, nas raparigas, é que o verdadeiro nome do indivíduo será escolhido.
 

De manhã cedo quando chegámos à aldeia a criança já cá estava fora e com o cordão umbilical cortado pela parteira. Era um rapaz. Ficámos contentes com a nossa sorte e com o fim feliz daquela mãe.


O miúdo ficou a chamar-se Carlos Nosalferes.
 

 

Éramos jovens e culturalmente muito diferentes daquele povo, mas iguais perante o sentimento simples de ver nascer uma criança.


Aprendi, que nascemos iguais e até com a mesma cor, e que as dores de uma mãe são as mesmas, e que a aflição e o sucesso de um parto são suficientes para esquecer ódios ou guerras.
 

publicado por Alto Chicapa às 10:41

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