Quinta-feira, 31 de Julho de 2008

18- Entregues a nós próprios

(continuação de 17- Os maçaricos)

 

Em Abril de 1972, já estávamos entregues a nós próprios. Aproximava-se o final da época das chuvas (Outubro a Abril), uma das duas estações do ano em Angola, a outra é o cacimbo, a estação seca mas com grandes amplitudes térmicas.


No meu grupo, havia três furriéis com um grande sentido de equipa, muito dinâmicos, alegres e acima de tudo uns bons companheiros (camaradas como se dizia na tropa). Nos últimos 34 anos, mesmo com contactos e encontros regulares entre nós, quero, mesmo assim, recorda-los com amizade. Um bem-haja, ao Canossa (José Sousa Canossa), ao Gomes (Alfredo Carmo Gomes) e ao Santos (José Manuel Moreira Santos).

 


Quase todo o pessoal do meu grupo de combate estava solteiro.
Tinham idades entre os vinte e os vinte e dois anos. O único velhote no grupo, como diziam, era eu que já ia a caminho dos vinte e quatro anos.


A minha passagem por Sacassange foi penosa. Deixei por lá algumas lágrimas e angústias. Foi aí que senti as minhas primeiras revoltas e consequentemente uma lenta e difícil adaptação.


Diariamente, fazíamos a protecção às máquinas, aos trabalhos e aos empregados da empresa Tecnil que abria a estrada, Luso / Lucusse, da JAEA (Junta Autónoma das Estradas de Angola).


Naquela guerra de protecção o nosso dia-a-dia era mais do que conhecido, desde as deslocações, aos horários, às posições no terreno, ao número de elementos que compunham o grupo e ao armamento disponível, tudo era previsível e conhecido.


Chamavam-nos, a tropa macaca.


A nossa interligação com as pessoas e com a organização dos trabalhos era normalmente nula.


As posições que ocupávamos na mata ou junto à picada iam mudando rotineiramente conforme o avançar das frentes de trabalho.
No dia seguinte todos sabiam os locais por onde a tropa ia passar ou se iria instalar novamente.

 


Bem, estávamos a ajudar as populações e a fazer protecção militar a um troço de via asfaltada de uma grande rede de estradas no Leste de Angola, uma envolvente da Zona Militar Leste, em áreas de pobres recursos materiais e de fraca ocupação humana, ligando Malange, Silva Porto, Serpa Pinto, Neriquinha, Gago Coutinho, Luso, Dala, Henrique Carvalho, Veríssimo Sarmento e Portugália, numa extensão de mais de 2.000 kms.


A par deste itinerário principal, era do nosso conhecimento que ainda estavam projectados itinerários secundários, com cerca de 2.500 kms, a ligar à estrada principal:
• Da Lunda, por Henrique de Carvalho, Nova Chaves e Teixeira de Sousa;
• Do Moxico, por Silva Porto e Gago Coutinho;
• Do Cuando-Cubango;
• Do Cubango;
• Do Cuito; e
• Do Guando, por Gago Coutinho.

 

Além destas vias alcatroadas, o Comando da ZML (Zona Militar Leste) tinha proposto a construção de mais duas estradas militares:
• Alto Chicaga - Cangumbe (+/- 130 kms); e
• Umpulo - Mumbué (+/- 150 kms).

 

Percebia-se que esta rede, de vias, num total de mais de 4.000 kms, era importante para o desenvolvimento da região e uma valiosa ajuda nas deslocações militares. Diminuíam o perigo das minas, proporcionavam mais meios contra a guerrilha e vantagens óbvias para a manobra militar.
 

Neste ano, estavam a trabalhar no Leste de Angola cinco empresas com a capacidade de construção anual de 1000 km de estrada asfaltada.
 

Nós, os militares, colaborávamos na defesa das pessoas e dos trabalhos de construção da estrada até ao Lucusse numa zona muito complicada e lado a lado com um corredor de passagem de guerrilheiros do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) vindos da Zâmbia, com passagem pelo Cacolo, e em direcção ao Norte de Angola.

 

 

Eram conhecidos e estavam identificados 3 esquadrões na zona, o Voina, o Vitória e o Sakembo (1 esquadrão tinha 100 a 150 efectivos).
Chamavam-lhe a Rota do Luena ou Agostinho Neto.

 


Neste cenário de guerra do Leste de Angola, onde três movimentos de independência lutavam pela hegemonia na região, acordou-se numa estratégica e tacitamente num pacto de não agressão entre o exército e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola). Esta medida também ajudou as NT (nossas tropas) e as operações militares, que foram especificamente preparadas para enfraquecer os outros dois movimentos, FNLA e MPLA, e faze-los recuar o mais possível para a fronteira prevista para a retirada, a Zâmbia. Chamavam-lhe o acordo dos madeireiros e segundo diziam, teria sido iniciado em 1969/70 pelo Dr. Jonas Savimbi, os Generais Costa Gomes e Bettencourt Rodrigues e um grupo de madeireiros com interesses na zona.

 


O pessoal afecto à construção da estrada demonstrava em cada momento pouca amizade e tolerância pela tropa. Organizava a seu dia a dia como muito bem lhe apetecia e sempre em função de meios próprios. Não tinham problemas com as deslocações, com as horas e ignoravam a nossa protecção. Estas atitudes nunca foram uma surpresa para mim, pois estava informado e avisado que alguns faziam a agulha para os dois lados.

 

A maior parte dos trabalhadores e capatazes eram oriundos de Angola, da metrópole e de Cabo Verde. Tinham um nível cultural muito baixo e eram, em minha opinião, muito pobres de sentimentos.


Sabia que não podia contar com eles e que a confiança teria de ser calculada e reduzida.
 

É certo que também não os conhecia bem, mas pelo que observava diariamente tinha razões para continuar a duvidar do seu comportamento relativamente ao exército.


Por todos os motivos, a nossa missão era muito ingrata, estávamos numa guerra de posição, presos no quartel, no destacamento ou estacionados na mata junto à picada. Estávamos diariamente à mercê da surpresa e também éramos alvos fáceis dos guerrilheiros que se movimentavam como queriam e com o conhecimento das florestas que nos rodeavam.
 

publicado por Alto Chicapa às 11:08

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