(continuação de 21- Ataque ao MVL - Movimento de Viaturas Ligeiras-)
Um grupo de mercenários katangueses, oriundos do Zaire da província do Katanga, fiéis seguidores políticos do deposto Moisés Tschombé, acolhidos há algum tempo em Angola com as suas famílias, formavam um órgão político-militar que colaborava com a guerra colonial ao lado do exército português a troco de armas, dinheiro e troféus.
Actuavam na região do Luso, Teixeira de Sousa, Chimbila, Camissombo e Cazombo.
Estavam armados com espingardas automáticas G3 e morteiros ligeiros, faziam algumas operações conjuntas ou independentes e colunas. Foram organizados em companhias e pelotões com um regulamento de disciplina próprio. Viviam de uma forma primária, recusavam a integração e aguardavam com esperança um regresso às suas terras de origem.
Foram eles que perseguiram o grupo atacante, mas sem resultados.
Acompanhei-os com outros militares e só me lembro que a experiência foi horrível, viviam como bichos e actuavam sem medos. Mas estes homens tinham que ser bons guerrilheiros, usavam um machado ou uma catana ou um punhal, pauzinhos de fricção para acender o lume, uma panelinha e um cobertor que amarravam ao cinturão das cartucheiras e naturalmente uma G3. Eram os instrumentos que consideravam necessários para a luta e para a sobrevivência.
Arrancámos cedo para a mata, e por volta das dezasseis horas, já tínhamos alcançado o principal objectivo, sem encontrarmos quaisquer vestígios da passagem de tropas estranhas. Montámos um rudimentar acampamento e pernoitámos em plena selva africana, não muito longe de uma linha de água.
Eu tinha uma carta topográfica que não servia para nada, tantas eram as manobras de diversão.
Impressionou-me a floresta que ladeava as margens e as nascentes de três afluentes do rio Canage. Havia folhas de vários anos espalhadas no chão e a sua cor castanho brilhante formava um tapete com características únicas. À distância havia dezenas de pequenos montes e vales, que se sucediam uns atrás dos outros cobertos por uma ténue bruma azulada, que ganhava tonalidades mais escuras na linha do horizonte.
Era uma floresta rica em árvores de grande porte, predominantemente o mussivi de madeira excelente, que justificava a existência de tantos madeireiros portugueses. A área também era muito rica em mel. Viam-se muitas colmeias no topo das árvores. A quantidade de mel era tanta que chegava a haver em buracos das cascas ou nas aberturas das árvores.
Amanheceu sem sobressaltos, mas com medidas de segurança reforçadas.
Ainda de madrugada e mal se começaram a ouvir os primeiros ruídos da passarada e a escuridão da noite desapareceu, para dar lugar ao dia, retomámos uma marcha contínua, para chegarmos o mais depressa possível a um outro ponto em referência. A única paragem foi ao fim de cinco horas depois de uma caminhada a um ritmo custoso e em locais de vegetação densa e impenetrável. Aqui, a progressão fazia-se ao ritmo da abertura à catanada de uma passagem por entre a cerrada vegetação, especialmente nas zonas mais baixas e atravessadas por linhas de água.
Para estes katangueses, a selva africana não tinha segredos e estavam sempre atentos a todos os vestígios no terreno.
A paragem para uma pequena refeição (?), serviu mais para o descanso. O silêncio era incrível na selva e nós falávamos apenas o indispensável para passarmos informações.
Foram quatro dias de marcha sob um calor insuportável, muita humidade e com muitas das tais manobras de diversão (despiste de alguma perseguição ou emboscada).
Ao princípio da tarde chegámos ao nosso destacamento do Canage com a operação perseguição terminada e sem nada de relevante a assinalar.
Antes de regressar a Sacassange tomei um banho, no rio Canage, e lavei-me com um pedaço de sabão azul e branco.
A aldeia do Canage era uma pequena sanzala, atravessada pelo rio canage, numa clareira aberta no meio de uma densa floresta, ligada por uma ponte metálica e ladeada pela picada, futura estrada de alcatrão, Luso a Gago Coutinho.
Tinha sido a minha primeira saída para a mata numa operação militar.
Era maçarico, fiquei assustado, medo quanto baste, entregue a mim, à sorte dos outros militares brancos e no meio de 30 indivíduos a falarem uma linguagem estranha ou ocasionalmente francês e com hábitos e costumes diferentes.
Em conclusão, nem tudo foi mau, melhorei a minha maneira de estar na guerra de guerrilha, observei-os e aprendi a abrir todos os meus sentidos, vista, ouvidos e olfacto como grandes sentinelas, e aceitei o silêncio absoluto, para ouvir o que a natureza tinha para dizer.
Com mais prudência voltei então a reflectir no termo, tropa macaca.
Quanto ao jovem guerrilheiro que tinha sido abandonado pelos seus, perto do local da emboscada, foi ali, por nós, sepultado.
Não houve vandalização ou qualquer mutilação do corpo, para a recolha de troféus.
Era um ritual que eu pensava já não existir. Quando me contaram os pormenores, impressionou-me a falta de respeito pelos mortos e por quem luta do mesmo modo e com as mesmas armas, embora do lado oposto. Esta prática de recolha de troféus era considerada normal pelos katangueses. Reclamei-a, por não fazer sentido, mas teimaram que tinha que ser assim.
. Ex-Militares