Terça-feira, 9 de Setembro de 2008

29- Dois irmãos de mães diferentes

(continuação de 28- O povo e a vida difícil das mulheres)


Enquanto estive no destacamento do Canage tive oportunidade de conviver com dois irmãos de mães diferentes, um rapaz e uma rapariga ainda “cafeco”.

 

Cuidavam da minha roupa com esmero e muita limpeza. Ele falava regularmente o português, tinha imensa curiosidade, um grande desejo de aprender e ler. Aos poucos começámos a ter mútua confiança. Tratava-o por Dito.

 


Um dia levou-me pela aldeia, a ver o sítio onde lavavam e secavam a roupa, a visitar o adivinhador, que tinha um pouco de médico também, o local onde se faziam as cerimónias fúnebres, o local da circuncisão, os batuques, onde se dançavam os merengues e a zona da sanzala onde vivia a sua família.

 

 

Apresentou-me, os seus outros nove irmãos e irmãs (alguns ainda de colo), quatro fogosas e esbeltas mulheres, duas ainda de seios empinados, uma seria a sua mãe, teriam idades entre, talvez, os 15 e os 40 anos e no caminho de terra batida havia uma cubata diferente, e maior, onde na frente e à sombra de uma grande árvore, estava sentado um homem que aparentava muito mais idade. A todos falei. Era gente boa.

 


Durante o regresso, pensei;
- Não pode ser, este homem, que é certamente muito mais velho, não dá conta daquelas mulheres e para fazer os filhos deve ter um ajudante.


Olhei para o Dito e com algum receio perguntei:
- Dito como é que o teu pai dá conta de todas aquelas mulheres?
- "Oh alferes, não esfala isso, os filho és mesmo dele."


Quando deixei o destacamento fiz questão de me despedir especialmente daquela família, deixei uma recordação monetária e os meus livros ao Dito e ofereci uma caixa de cucas (cervejas) ao pai.

 

No entanto, não saí sem que ele me desse o segredo da sua capacidade sexual.
Respondeu-me, "Cá, nossalferes, tem esperto, tomo milongo (?), que vou buscar nos mata, para ter os pau direito e fazer os minino" (já não me lembro do nome, mas mostrou-me uma raiz amarelada parecida com um nabo grande).


Ainda pensei que seria o pau de Cabinda ou o pó de cantaridas, mas aquele “milongo” era certamente mais do que isso.


Saí desta zona, sem a angústia de querer ser herói, satisfeito comigo, honrado e com o luxo de ter gravado o meu olhar longa e eternamente. Houve momentos mágicos que ao recordarmos fazem parar o tempo e o mundo se fosse possível.


Muitos anos depois vi o filme África Adeus, e como eu acreditei na frase que Meryl Streep diz para Robert Redford: - Tudo o que disseres agora, eu acredito.
 

publicado por Alto Chicapa às 16:18

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Quinta-feira, 28 de Agosto de 2008

25- "Chindelo" só querer "maka"

(continuação de 24- O "nossoalferes" paga)

 

Atenção: Este texto contém algumas frases que são impróprias, para menores ou pessoas sensíveis.


Uma jovem luena, com ar de poucos amigos, queixava-se do chindelo Q. por querer “maka”, armar confusão com ela.


Esta moça não era uma profissional do sexo, mas já tinha algumas comissões como costumávamos dizer.

 

Acusava o “chindelo” (branco) Q. de lhe querer bater para “esfoder nasboca” e insistia comigo, “nossoalfers, pá, asboca és pra comer, osmataco és pra cagar e assunji és pra esfoder, xi nossoalfers, essi gaju num tens esperto, num querer esfoder cum minina, só querer maka”.


Naquela época a mulher luena, enquanto solteira, tinha muita liberdade, na vida sexual. Praticava o sexo por desejo e por dinheiro e muitas vezes era ela que escolhia o homem, casado ou solteiro, com quem queria estar. O próprio pai impunha às filhas o casamento ou a prostituição. Recebia a maior parte do dinheiro, que geralmente destinava ao sustento dele e da família.


Este comportamento era considerado normal e bem aceite nesta comunidade. Também, às muitas mulheres casadas lhes era permitido ter amantes e até, o mais aceite era considerado como o marido suplente.


Havia um outro costume que estava relacionado com o alojamento de um forasteiro. Diziam que só podia ser com alojamento completo, cama e mulher, sendo que, no final, a mulher deveria ser gratificada.


As causas deste comportamento, deviam-se ao facto de a maioria das mulheres se casarem com homens muito mais velhos, da poligamia, e da imposição de um marido pela família ou a sua venda para casamento.


Voltando à jovem luena, convém referir, que enquanto novas eram sempre muito elegantes e que aquela acusação, ao chindelo Q., tinha, para além de tudo, um fundamento cultural neste ano de 1972.

 

Via-se, que entre os nativos, não existia, por exemplo, o beijo e o contacto físico, senão, como diziam, durante a intimidade do acto sexual onde as bocas e os corpos se confundem. Até o cumprimento de mão era substituído por um bater as palmas ou bater no peito.

 

Também não existiam aberrações nem perversão dos costumes, aliás existiam lendas para provocar repugnância, o medo e o horror a tais práticas.

 

Em conclusão, defendiam que cada órgão do corpo humano só deve ser empregue nas funções para que a natureza o criou.
 

publicado por Alto Chicapa às 13:31

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Terça-feira, 26 de Agosto de 2008

24- O “nossoalferes” paga

(continuação de 23- O O. desenfiou-se)

 

Corria o mês de Julho de 1972 em plena estação do cacimbo.


Quatro “bons” malandros do meu grupo de combate lembraram-se de brincar com a guerra e com a vida.


Durante a noite envolveram-se, numa "geraldina". Cada um à sua vez, em prazer sexual com uma senhora, da sanzala do Canage, já conhecida por estas práticas.

 

Chamavam-lhe, “A muda”.
 

No final de cada serviço, diziam-lhe:
- O “nossoalferes” vem no fim e paga-te!
 

Na madrugada do dia seguinte, a senhora, enganada, apareceu à porta do nosso rudimentar destacamento. Estava furiosa e trazia consigo outras mulheres e mais dois homens. Armou-se uma tremenda confusão e uma grande gritaria.
 

Exigiam do “nossoalferes” o devido pagamento.
 

Eu estava deitado e não sabia o que se tinha passado.
 

Bem, no meio de toda esta mútua complicação, foi com sorte, com algumas cedências e com o triplo do dinheiro necessário, que o assunto foi solucionado a bem de todos.
 

Para me apaziguarem, diziam insistentemente que só queriam desenferrujar o prego e que não pensaram nas consequências da brincadeira, mas naqueles dias e naquele local, sem leis ou regras, o desfecho poderia ter sido irreparável.
 

publicado por Alto Chicapa às 13:38

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Domingo, 17 de Agosto de 2008

22- Fiéis katangueses

(continuação de 21- Ataque ao MVL - Movimento de Viaturas Ligeiras-)

 

Um grupo de mercenários katangueses, oriundos do Zaire da província do Katanga, fiéis seguidores políticos do deposto Moisés Tschombé, acolhidos há algum tempo em Angola com as suas famílias, formavam um órgão político-militar que colaborava com a guerra colonial ao lado do exército português a troco de armas, dinheiro e troféus.


Actuavam na região do Luso, Teixeira de Sousa, Chimbila, Camissombo e Cazombo.


Estavam armados com espingardas automáticas G3 e morteiros ligeiros, faziam algumas operações conjuntas ou independentes e colunas. Foram organizados em companhias e pelotões com um regulamento de disciplina próprio. Viviam de uma forma primária, recusavam a integração e aguardavam com esperança um regresso às suas terras de origem.


Foram eles que perseguiram o grupo atacante, mas sem resultados.

 


Acompanhei-os com outros militares e só me lembro que a experiência foi horrível, viviam como bichos e actuavam sem medos. Mas estes homens tinham que ser bons guerrilheiros, usavam um machado ou uma catana ou um punhal, pauzinhos de fricção para acender o lume, uma panelinha e um cobertor que amarravam ao cinturão das cartucheiras e naturalmente uma G3. Eram os instrumentos que consideravam necessários para a luta e para a sobrevivência.
 

Arrancámos cedo para a mata, e por volta das dezasseis horas, já tínhamos alcançado o principal objectivo, sem encontrarmos quaisquer vestígios da passagem de tropas estranhas. Montámos um rudimentar acampamento e pernoitámos em plena selva africana, não muito longe de uma linha de água.

 


Eu tinha uma carta topográfica que não servia para nada, tantas eram as manobras de diversão.


Impressionou-me a floresta que ladeava as margens e as nascentes de três afluentes do rio Canage. Havia folhas de vários anos espalhadas no chão e a sua cor castanho brilhante formava um tapete com características únicas. À distância havia dezenas de pequenos montes e vales, que se sucediam uns atrás dos outros cobertos por uma ténue bruma azulada, que ganhava tonalidades mais escuras na linha do horizonte.

 

Era uma floresta rica em árvores de grande porte, predominantemente o mussivi de madeira excelente, que justificava a existência de tantos madeireiros portugueses. A área também era muito rica em mel. Viam-se muitas colmeias no topo das árvores. A quantidade de mel era tanta que chegava a haver em buracos das cascas ou nas aberturas das árvores.


Amanheceu sem sobressaltos, mas com medidas de segurança reforçadas.
 

Ainda de madrugada e mal se começaram a ouvir os primeiros ruídos da passarada e a escuridão da noite desapareceu, para dar lugar ao dia, retomámos uma marcha contínua, para chegarmos o mais depressa possível a um outro ponto em referência. A única paragem foi ao fim de cinco horas depois de uma caminhada a um ritmo custoso e em locais de vegetação densa e impenetrável. Aqui, a progressão fazia-se ao ritmo da abertura à catanada de uma passagem por entre a cerrada vegetação, especialmente nas zonas mais baixas e atravessadas por linhas de água.


Para estes katangueses, a selva africana não tinha segredos e estavam sempre atentos a todos os vestígios no terreno.

 


A paragem para uma pequena refeição (?), serviu mais para o descanso. O silêncio era incrível na selva e nós falávamos apenas o indispensável para passarmos informações.


Foram quatro dias de marcha sob um calor insuportável, muita humidade e com muitas das tais manobras de diversão (despiste de alguma perseguição ou emboscada).
 

Ao princípio da tarde chegámos ao nosso destacamento do Canage com a operação perseguição terminada e sem nada de relevante a assinalar.


Antes de regressar a Sacassange tomei um banho, no rio Canage, e lavei-me com um pedaço de sabão azul e branco.

 


A aldeia do Canage era uma pequena sanzala, atravessada pelo rio canage, numa clareira aberta no meio de uma densa floresta, ligada por uma ponte metálica e ladeada pela picada, futura estrada de alcatrão, Luso a Gago Coutinho.


Tinha sido a minha primeira saída para a mata numa operação militar.

 

Era maçarico, fiquei assustado, medo quanto baste, entregue a mim, à sorte dos outros militares brancos e no meio de 30 indivíduos a falarem uma linguagem estranha ou ocasionalmente francês e com hábitos e costumes diferentes.


Em conclusão, nem tudo foi mau, melhorei a minha maneira de estar na guerra de guerrilha, observei-os e aprendi a abrir todos os meus sentidos, vista, ouvidos e olfacto como grandes sentinelas, e aceitei o silêncio absoluto, para ouvir o que a natureza tinha para dizer.


Com mais prudência voltei então a reflectir no termo, tropa macaca.


Quanto ao jovem guerrilheiro que tinha sido abandonado pelos seus, perto do local da emboscada, foi ali, por nós, sepultado.


Não houve vandalização ou qualquer mutilação do corpo, para a recolha de troféus.


Era um ritual que eu pensava já não existir. Quando me contaram os pormenores, impressionou-me a falta de respeito pelos mortos e por quem luta do mesmo modo e com as mesmas armas, embora do lado oposto. Esta prática de recolha de troféus era considerada normal pelos katangueses. Reclamei-a, por não fazer sentido, mas teimaram que tinha que ser assim.
 

publicado por Alto Chicapa às 15:44

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Domingo, 10 de Agosto de 2008

21- Ataque ao MVL (Movimento de Viaturas Logísticas)

(continuação de 20- Exército de mosquitos)

 

Uma vez por semana passava na nossa zona de protecção, uma coluna de viaturas, o MVL (Movimento de Viaturas Ligeiras).

 

Era composto por várias viaturas civis com pessoas, equipamentos e mantimentos e várias viaturas militares com um grupo de protecção constituído por um esquadrão de comandos, os Dragões.


Esta coluna de viaturas, por ser, igualmente, muito previsível, tinha uma longa história de ataques na zona do Luatamba, uma aldeia abandonada, muito próxima da povoação do Canage.

 


A estrada, ainda em estado de picada, atravessava esta região entre densas florestas. Era temida, considerada muito perigosa e sempre de difícil passagem. As viaturas tinham que abrandar a marcha devido ao declive e era-lhes exigido um esforço suplementar pelo excesso de carga e pela areia solta no piso. Eram 1500 metros com uma descida muito íngreme seguida imediatamente de uma grande subida.

 

Era o local perfeito e o eleito pelo MPLA para ataques diferenciados às viaturas militares e principalmente ao MVL. Diziam que a táctica era sempre a mesma, umas vezes atacavam e isolavam uma das últimas viaturas, outras vezes atacavam as da frente para criar confusão e desorganizar os meios de protecção.


Num desses ataques eu estava muito perto. Uma vez mais, tinha sido emboscada uma das últimas viaturas civis. O ataque foi comandado por um homem que se destacou em todo o processo, diziam que era um guerrilheiro experiente, falava português, tinha barba grande e integrava um grupo do MPLA, calculado em 10/15 elementos.


Resultaram alguns danos materiais numa viatura civil, alguma desorganização, muitos tiros e a morte de um jovem guerrilheiro do MPLA que aparentava ter +/- 16 anos de idade.

 

 

Este jovem, sem qualquer identificação, atingido no abdómen por uma rajada de G3 (arma de guerra individual de rajada automática), encontrava-se, encostado a uma árvore com uma metralhadora automática ao ombro (uma Degtyarev de fabrico Russo, acho que era este o nome). O atirador estava afastado do grupo uns 20 metros e a arma estava atada por uma corda, que, eventualmente, serviria para a retirar do local em caso de insucesso.


O esquadrão de comandos dos Dragões conhecia bem a região e o percurso e não brincavam em serviço.
 

publicado por Alto Chicapa às 11:45

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Quinta-feira, 31 de Julho de 2008

18- Entregues a nós próprios

(continuação de 17- Os maçaricos)

 

Em Abril de 1972, já estávamos entregues a nós próprios. Aproximava-se o final da época das chuvas (Outubro a Abril), uma das duas estações do ano em Angola, a outra é o cacimbo, a estação seca mas com grandes amplitudes térmicas.


No meu grupo, havia três furriéis com um grande sentido de equipa, muito dinâmicos, alegres e acima de tudo uns bons companheiros (camaradas como se dizia na tropa). Nos últimos 34 anos, mesmo com contactos e encontros regulares entre nós, quero, mesmo assim, recorda-los com amizade. Um bem-haja, ao Canossa (José Sousa Canossa), ao Gomes (Alfredo Carmo Gomes) e ao Santos (José Manuel Moreira Santos).

 


Quase todo o pessoal do meu grupo de combate estava solteiro.
Tinham idades entre os vinte e os vinte e dois anos. O único velhote no grupo, como diziam, era eu que já ia a caminho dos vinte e quatro anos.


A minha passagem por Sacassange foi penosa. Deixei por lá algumas lágrimas e angústias. Foi aí que senti as minhas primeiras revoltas e consequentemente uma lenta e difícil adaptação.


Diariamente, fazíamos a protecção às máquinas, aos trabalhos e aos empregados da empresa Tecnil que abria a estrada, Luso / Lucusse, da JAEA (Junta Autónoma das Estradas de Angola).


Naquela guerra de protecção o nosso dia-a-dia era mais do que conhecido, desde as deslocações, aos horários, às posições no terreno, ao número de elementos que compunham o grupo e ao armamento disponível, tudo era previsível e conhecido.


Chamavam-nos, a tropa macaca.


A nossa interligação com as pessoas e com a organização dos trabalhos era normalmente nula.


As posições que ocupávamos na mata ou junto à picada iam mudando rotineiramente conforme o avançar das frentes de trabalho.
No dia seguinte todos sabiam os locais por onde a tropa ia passar ou se iria instalar novamente.

 


Bem, estávamos a ajudar as populações e a fazer protecção militar a um troço de via asfaltada de uma grande rede de estradas no Leste de Angola, uma envolvente da Zona Militar Leste, em áreas de pobres recursos materiais e de fraca ocupação humana, ligando Malange, Silva Porto, Serpa Pinto, Neriquinha, Gago Coutinho, Luso, Dala, Henrique Carvalho, Veríssimo Sarmento e Portugália, numa extensão de mais de 2.000 kms.


A par deste itinerário principal, era do nosso conhecimento que ainda estavam projectados itinerários secundários, com cerca de 2.500 kms, a ligar à estrada principal:
• Da Lunda, por Henrique de Carvalho, Nova Chaves e Teixeira de Sousa;
• Do Moxico, por Silva Porto e Gago Coutinho;
• Do Cuando-Cubango;
• Do Cubango;
• Do Cuito; e
• Do Guando, por Gago Coutinho.

 

Além destas vias alcatroadas, o Comando da ZML (Zona Militar Leste) tinha proposto a construção de mais duas estradas militares:
• Alto Chicaga - Cangumbe (+/- 130 kms); e
• Umpulo - Mumbué (+/- 150 kms).

 

Percebia-se que esta rede, de vias, num total de mais de 4.000 kms, era importante para o desenvolvimento da região e uma valiosa ajuda nas deslocações militares. Diminuíam o perigo das minas, proporcionavam mais meios contra a guerrilha e vantagens óbvias para a manobra militar.
 

Neste ano, estavam a trabalhar no Leste de Angola cinco empresas com a capacidade de construção anual de 1000 km de estrada asfaltada.
 

Nós, os militares, colaborávamos na defesa das pessoas e dos trabalhos de construção da estrada até ao Lucusse numa zona muito complicada e lado a lado com um corredor de passagem de guerrilheiros do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) vindos da Zâmbia, com passagem pelo Cacolo, e em direcção ao Norte de Angola.

 

 

Eram conhecidos e estavam identificados 3 esquadrões na zona, o Voina, o Vitória e o Sakembo (1 esquadrão tinha 100 a 150 efectivos).
Chamavam-lhe a Rota do Luena ou Agostinho Neto.

 


Neste cenário de guerra do Leste de Angola, onde três movimentos de independência lutavam pela hegemonia na região, acordou-se numa estratégica e tacitamente num pacto de não agressão entre o exército e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola). Esta medida também ajudou as NT (nossas tropas) e as operações militares, que foram especificamente preparadas para enfraquecer os outros dois movimentos, FNLA e MPLA, e faze-los recuar o mais possível para a fronteira prevista para a retirada, a Zâmbia. Chamavam-lhe o acordo dos madeireiros e segundo diziam, teria sido iniciado em 1969/70 pelo Dr. Jonas Savimbi, os Generais Costa Gomes e Bettencourt Rodrigues e um grupo de madeireiros com interesses na zona.

 


O pessoal afecto à construção da estrada demonstrava em cada momento pouca amizade e tolerância pela tropa. Organizava a seu dia a dia como muito bem lhe apetecia e sempre em função de meios próprios. Não tinham problemas com as deslocações, com as horas e ignoravam a nossa protecção. Estas atitudes nunca foram uma surpresa para mim, pois estava informado e avisado que alguns faziam a agulha para os dois lados.

 

A maior parte dos trabalhadores e capatazes eram oriundos de Angola, da metrópole e de Cabo Verde. Tinham um nível cultural muito baixo e eram, em minha opinião, muito pobres de sentimentos.


Sabia que não podia contar com eles e que a confiança teria de ser calculada e reduzida.
 

É certo que também não os conhecia bem, mas pelo que observava diariamente tinha razões para continuar a duvidar do seu comportamento relativamente ao exército.


Por todos os motivos, a nossa missão era muito ingrata, estávamos numa guerra de posição, presos no quartel, no destacamento ou estacionados na mata junto à picada. Estávamos diariamente à mercê da surpresa e também éramos alvos fáceis dos guerrilheiros que se movimentavam como queriam e com o conhecimento das florestas que nos rodeavam.
 

publicado por Alto Chicapa às 11:08

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Sexta-feira, 25 de Julho de 2008

17- Os maçaricos

(continuação de 16- O aquartelamento de Sacassange)


A nós, os recém-chegados, chamavam-nos os maçaricos ou os “mikes”.


Para todos, quase todos, oficiais e restante pessoal, era tudo novo, desconhecido e estranho.


Para além, da já referida conferência de bens e equipamentos e da transmissão de responsabilidades, o novo comando, capitão, alferes, sargentos do quadro, furriéis e soldados, identificavam-se com a região envolvente de Sacassange, com as pessoas e com o destacamento militar na povoação do Canage, localizado a uns bons quilómetros do quartel, junto à picada para o Lucusse e Gago Coutinho.

 


A sobreposição, os contactos e as novas funções não se limitavam apenas ao Comandante de Companhia, Capitão Miliciano, João Manuel Perdigão e aos dois únicos elementos do quadro do exército, o Primeiro-sargento, António Ledo Teixeira e o Sargento-ajudante, António Manuel Azevedo, mas também a todo o pessoal, onde cada um com o seu posto teve de passar por situação idêntica, para que, uma vez, sozinhos, não tivessem problemas.


Eu, Carlos Alberto Santos, era um dos quatro Alferes Miliciano da Companhia de Caçadores 3485.

 

 

Fiquei responsável pelo chamado primeiro grupo de combate, com cerca de vinte a trinta elementos, o segundo grupo estava entregue ao Alferes Miliciano João Bouquet Monteiro, o terceiro grupo ao Alferes Miliciano António Oliveira Boavida e o quarto grupo ao Alferes Miliciano Jorge Goerva Coelho.


Há mais informações sobre a constituição da Companhia, que podem ser consultadas em:
http://cc3485.no.sapo.pt/comando.htm


A minha equipa (1º grupo de combate), onde havia gente “cinco estrelas” e muito bem formada, era constituída por soldados naturais de Angola (pretos e brancos) e de soldados brancos provenientes da metrópole, na sua maioria de Trás-os-Montes.
Isto resultou do facto de, aos elementos da metrópole, se ter juntado o pessoal angolano, durante o período de permanência no Grafanil. A maior parte do pessoal angolano distinguia-se dos restantes não só pela cor, mas pelos costumes que traziam consigo.

 

Apesar de não ter tido tempo suficiente para os conhecer bem em Luanda, alguns pareciam-me cultos e com mais estudos do que alguns soldados da metrópole. Há os que tinham mesmo estudos liceais. O máximo de habilitações que encontrei nos soldados da metrópole, era a terceira e a quarta classe.

 


A todos, devo muito.


Antes dos planos da nossa autodefesa, curiosamente a prioridade dada pelo nosso comandante de companhia foram as escalas de serviço para os próximos tempos e a colocação dos soldados “aramistas”.


Embora muito jovem, percebi de uma maneira tão clara que os jogos começavam e que a máquina burocrática do exército e os senhores já habituados aos gabinetes estavam a instalar e a instalar-se, a fazer a guerra no papel e a importar ou a transportar vícios adquiridos de outras comissões.


Enfim, entre muito resmungar, cedi, pensei, elaborei e tentei os melhores planos.


Nunca tive dúvidas que estava a dar o meu melhor e que queria ser imparcial. Interessava que não houvesse motivos para grandes desagrados ou discussões.


Em conclusão, nunca consegui agradar a todos.
 

publicado por Alto Chicapa às 14:43

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Quarta-feira, 9 de Julho de 2008

16- O aquartelamento de Sacassange

(continuação de 15- Atirados para um comboio)


Completamente esgotados, chegámos ao nosso local de destino o aquartelamento de Sacassange nos arredores da cidade do Luso.

 


Fomos calorosamente recebidos pelos militares que íamos render e que aguardavam ansiosos a nossa chegada.


Era um aquartelamento pouco cuidado que mais parecia um destacamento. As instalações eram precárias e acanhadas. Do que me lembro, havia uma porta de armas, a casa dos oficiais, o depósito de géneros, a secretaria, uma messe, um posto de vigia alto, o forno do pão, o refeitório dos soldados, todo aberto para que o ar corra livremente, apenas coberto pela chapa ondulada de zinco para protecção do sol e das chuvadas, a cozinha e uma cantina. As oficinas e a arrecadação de material ficavam próximas das casernas dos soldados.

 

 


O aspecto mais agradável do aquartelamento é que ele ficava num planalto, lado a lado com um pequeno rio afluente do rio Luena.

 

 

O clima, muito diferente do de Luanda, é quase idêntico ao da metrópole com calor suportável durante o dia, e fresco durante a noite. Não dispensava o uso de cobertores.

 


Estava localizado num antigo colonato, uma zona agrícola que já há algum tempo tinha sido abandonada. Os madeireiros em número reduzido, também deveriam ter sido bastantes na região. O desnível em relação ao mar era de 1300 metros e ficava a poucos quilómetros do Luso (+/- 14 km) na estrada para o Lucusse e para Gago Coutinho. Nas proximidades, 2 a 3 quilómetros, havia uma grande povoação, a sanzala do Moxico Velho.

 


O que tive de fazer nos primeiros dias estava longe de ser interessante mas era importante. Começava o meu verdadeiro papel nesta estúpida guerra, que não deveria ser minha, apesar de me ver metido nela. Ajudei na inventariação e recepção de algum material, juntei monótonas e enfadonhas listas de material, com assinaturas conjuntas de quem fica e de quem parte. Eram relações de todo o tipo de material existente, que servirão, mais tarde, para uma nova conferência e transmissão, quando chegar a nossa vez de sermos rendidos por outro grupo.

 


Contava-se que nas rendições havia sempre a tendência para algumas aldrabices, era o “desenrasca” da tropa. Cobertores dobrados ao meio para serem contados por dois, vasilhas de azeite e de óleo em que metade era água, guinchos de viatura sem o mecanismo interior ou a peça que era contada depois saia por uma porta entrava por outra porta e voltava a ser contada, enfim sempre me disseram que a tropa manda desenrascar, mas não podes ser apanhado.
 

publicado por Alto Chicapa às 15:21

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