Quarta-feira, 24 de Dezembro de 2008

65- Epilogo / Fim da comissão

(continuação de 64- Epilogo / Destacamento)

 

Quando se entrou num período próximo do fim da comissão o pessoal ficou mais animado e começou a acreditar que íamos chegar inteiros ao “Puto”.


Todos queriam uma última recordação para levarem, uns panos estampados (os quitenges), imagens esculpidas em madeira, cantaridas (úteis na velhice), colares de malaquite, roupas, aparelhagens sonoras, garrafas de whisky e tabaco.


Seguiu-se, o grande frenesim, e para o Silva, o nosso carpinteiro, de fazer os caixotes com madeiras nobres para levarmos todas as recordações, que seguiriam mais tarde de barco.


Mas o final, não ia ser fácil. Com os sucessivos atrasos na nossa rendição, com os acontecimentos políticos que já se adivinhavam desde meados de Março (1974), conforme mensagens chegadas ao seio do núcleo de oficiais milicianos oriundos da Universidade de Lisboa, e a mudança de regime no governo português, após o 25 de Abril, o nosso regresso atrasou-se e obrigou muitos a repensarem o futuro das suas vidas.
No meio de muita desinformação, lembro-me vagamente que o desconhecimento da situação era total e a confusão reinou durante semanas.

 

No mês de Maio, fomos finalmente rendidos.


Enquanto eu e o furriel Coimbra fomos os eleitos a percorrer uns adicionais 1000 quilómetros, até Sá da Bandeira, em velhas camionetas de carga para entregar os soldados do contingente de Angola, outros tiveram o direito a um merecido descanso em Luanda, a tal cidade que ainda fervia de vida, com as suas belas praias, os bons restaurantes da ilha, os cinemas ao ar livre (recordo o Miramar), muitas mulheres na moda e um ambiente tão frenético onde todos se alheavam completamente do que se estava a passar e do que estava para vir.
Aquela gente, parecia não acreditar, que a umas centenas de quilómetros havia ainda uma luta armada, que tinha acontecido em Portugal uma forte mudança política e que se adivinhava o rápido aparecimento dos primeiros focos de uma guerra civil.


Quando toda a Companhia já estava em Luanda, no dia 05 de Junho meteram-nos num avião, fretado à TAP, e regressámos a Lisboa.
O capitão e outros camaradas ainda ficaram mais uns dias a tratar da liquidatária da Companhia e do fecho das contas a entregar nos Serviços de Contabilidade e Administração.
Durante a viagem, meditei sobre a minha estadia em Angola, o tempo perdido, os locais por onde andei e onde me sentia melhor, na minha vida que já estava a mudar naquele avião para outros ritmos e outros hábitos, procurar trabalho, cumprir horários e tal como a outras pessoas normais, ganhar a minha independência.

 

A sobrevoar Portugal, as lágrimas ainda me vieram aos olhos quando se entoou, cantou, berrou, quase até chegarmos à pista de aterragem, a canção "Cheira bem, cheira a Lisboa..."
Quando aterrámos em Lisboa, no aeroporto de Figo Maduro, e saímos para o quartel, RALIS, tínhamos terminado a nossa odisseia.

 

Já à civil, reparei que Lisboa era uma cidade cheia de Verão, filmes recentes, jornais, depois a televisão a emitir programas que eram para mim quase uma novidade, tudo parecia, ainda... um sonho.


Passados estes anos, ainda tenho a consciência de que, quando regressei, não era o mesmo e que aqueles dois anos e meio pesaram muito na minha vida, mas também aprendi muito, a vida deu-me luta, obrigou-me a enfrentar desafios e hoje, ainda sei o que não quero.


Finalmente, ficaram as boas recordações e as suficientes para agora passados tantos anos as podermos partilhar em encontros, em viagens ou no nosso sítio na internet http://cc3485.no.sapo.pt/ , lembrando que houve também uma saudável, sincera e desinteressada colaboração vivida naqueles momentos entre todos que poderá servir de exemplo para hoje sermos melhores, ultrapassarmos traumas e esquecermos divergências.

 

Nzambi e os espíritos da selva estiveram comigo, não esqueço.
 

 

(a seguir - Conclusões)

 

publicado por Alto Chicapa às 14:08

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Terça-feira, 21 de Outubro de 2008

43- Operação “Pato 7212”, segundo e terceiro dia

(continuação de 42- Operação “Pato 7212”, primeiro dia)

 

No segundo dia, antes das horas de maior calor, andámos apenas meia dúzia de quilómetros.

 

 

Seguimos um pouco para sul, sem deixar qualquer indicação que o nosso verdadeiro trajecto era para oeste.

 

Ficámos perto de uma linha de água onde se tomou um banho refrescante.

 

A noite, passamo-la sem sobressaltos de maior, mas na companhia de um ou mais leões e dos seus longos rugidos. O chão até tremia.


O terceiro dia, foi bem diferente. Saímos folgados, mal começou a clarear. Progredimos, o máximo que nos foi possível, uns bons quilómetros em direcção à margem esquerda do rio Cuango.

 

Lembro-me que contrariei o plano da operação, optando pela margem esquerda, hoje não sei os verdadeiros motivos, mas naquela época, penso ter entendido que era a melhor estratégia.


Durante o percurso, tivemos o cuidado de vermos atentamente por onde íamos e de procurar vestígios. O que encontrávamos era antigo e irrelevante. As lavras estavam abandonadas, os trilhos não eram usados e a ausência de população era uma realidade.

 

Mesmo assim, estávamos perto, de uma, das conhecidas e consentidas zonas de acantonamento da UNITA, entre o Munhango e o Cassai.


Felizmente, apenas constatámos e colhemos os louros do trabalho desenvolvido, em meados de 1972, pela operação Rojão IH e pela intervenção do Agrupamento de Comandos, Raio (companhias 31, 33 e 37).
 

(a seguir - Operação “Pato 7212”, quarto e quinto dia)

 

publicado por Alto Chicapa às 14:33

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Sexta-feira, 3 de Outubro de 2008

36- O nosso aquartelamento

(continuação de 35- As sentinelas)

 

O nosso novo aquartelamento, embora não fosse um modelo de virtudes, era, mesmo assim, muito agradável. As instalações eram amplas e funcionais.
 

Havia duas portas de armas, uma virada a leste e a outra a oeste e um amplo espaço, onde se incluía uma parada muito limpa.

 

 

Do lado esquerdo, havia uma casa com os quartos dos dois sargentos, o bar de oficiais, sargentos e furriéis, um acanhado posto de transmissões e de cripto, um forno de padeiro, a casa com os quartos dos oficiais, a messe de oficiais, sargentos e furriéis, uma cozinha rudimentar de aspecto pouco limpo ou agradável, o refeitório dos soldados, bastante gorduroso, nada confortável e apenas coberto por chapas de zinco, o depósito dos géneros alimentares onde havia frigoríficos a funcionar a petróleo, uma cantina, uma caserna pré-fabricada dormitório dos soldados, uma casa coberta de colmo que servia para trabalhos diversos, um gerador de electricidade, a oficina e o parque das viaturas, um paiol (de más recordações para os camaradas que lá estiveram presos), um local com gasolina para helicópteros, um posto de enfermagem e o posto de vigia.

 

 

No lado oposto, havia um posto de vigia, a secretaria, um pré-fabricado dormitório dos furriéis, as casernas dormitório dos soldados em edifícios pré-fabricados, que não deviam ter mais do que três anos e umas acanhadas casas de banho.


Para além destes equipamentos, ainda tínhamos uma pista em terra batida para pequenos aviões, um campo de futebol, um campo de voleibol, uma plantação de abacaxis e um pouco mais tarde uma piscina.

 


Era um local agradável, a 1240 metros de altitude, com muito verde, água e largos horizontes.


Fora do quartel, a diminuta localidade e a comunidade civil faziam lembrar em alguns pormenores a época colonial dos anos 50. A antiga casa do administrador de posto, que estava desabitada, era uma construção, segundo creio, dos começos do século, com planta quadrada, com uma boa área coberta, que a protege das fortes chuvadas e fornece um bom local de permanência, nas horas de calor. Nas traseiras havia um grande cercado com duas frondosas mangueiras.

 

 

Em pleno interior de África e sem estradas, era um oásis e um luxo que poucos tinham na metrópole.


O clima, que era excelente, era menos quente do que em Sacassange e tinha também muitas semelhanças com o da metrópole.

publicado por Alto Chicapa às 12:58

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Quarta-feira, 1 de Outubro de 2008

35- As sentinelas

(continuação de 34- Alto Chicapa)

 


 

Este texto contém algumas frases que são impróprias, para menores ou pessoas sensíveis.

 

Voltando às noites, que eram normalmente muito escuras, mas onde se via tudo, reparei que à distância de centena e meia de metros havia uma sentinela a fumar no alto da vigia. Via-se perfeitamente o momento em que estava a puxar uma fumaça e a ponta do cigarro mais brilhante, tão brilhante que dava para adivinhar os contornos da cara.
 

Aproximei-me, e disse-lhe:
- Ouve lá, oh B.!
- Queres ir encaixotado para Trás-os-Montes?
- Os turras abrem-te dois buracos na cabeça, um à frente e o outro atrás!
- És um autêntico anjinho, ao menos respeita os outros e a segurança quando estás de sentinela!
Na manhã seguinte, o rapaz encheu-se de razões e como não gostou nada daquela chamada de atenção foi queixar-se ao alferes responsável pelo seu grupo de combate que acabou por se zangar e ainda afirmou com ares de ofendido que ali quem mandava era ele.


Uma outra vez, encontrei as sentinelas a jogar às cartas. Disse-lhes qualquer coisa, que não me recordo, e rasguei-lhes as cartas. Zangaram-se como era obvio, devolveram-me ameaças, mas ignorei-as, e deixei-os orgulhosamente sós.


Ainda, uma outra vez, mas esta foi muito penosa para mim, não sei os motivos do meu desgosto naquele momento, sei que fiquei arrependido de o ter feito. Enquanto o moço dormia profundamente e na paz dos anjos, levei-lhe a arma para o meu quarto. Hoje, tenho a certeza que o deveria ter acordado. Concretamente, não conhecia a vida do rapaz nem os seus problemas, só sabia que pertencia ao pelotão do alferes C. De manhã, apareceu no meu quarto. Garantiu-me que tinha apanhado um valente susto e uma grande lição. Recebi dele provas de um grande carácter e uma grande lição de humildade. Onde estiveres, bem hajas.

 

Finalmente, um outro caso, este por volta das 4 horas da manhã (quase dia em África), com um elemento do meu grupo de combate.
- Então A. que se passa?
- Alferes não diga nada ao Capitão, só estava a esgalhar uma pívia à maneira.
- Isso, eu vi, cheguei até aqui, nem davas por mim, os outros levavam-te ao colo.
- Oh meu alferes, peço desculpa, estava a olhar para a loiraça do calendário e comecei a lembrar-me daquela moça “explosiva” do cinema em Henrique de Carvalho, moreninha, calças justas, um valente papo e um par de mamas sem sutiã a quererem saltar para fora da camiseta.
- Dava-lhe cá uma martelada e enterrava-a até aos tomates e tenho a certeza de que ela se rebolaria a pedir mais.
- Repara A., o capitão não é para aqui chamado e também percebi o motivo do teu desatino, mas podemos levar com uns balázios se não estiveres atento e compreende que estávamos todos a confiar em ti.
- Alferes, tem toda a razão, somos amigos e não volta acontecer, mas acredite …, para mim, aquela mulher é só cona!


O que acabei de relatar, foram casos isolados e não aconteciam com muita frequência, como eventualmente poderá parecer nesta narrativa.

 

Pelo contrário, com a velhice, com o isolamento do posto de vigilância e com alguns momentos de arrepio, a sentinela já impunha a si própria uma auto defesa intermédia e interessante, colocava pequenas e engenhosas armadilhas, até criava um ponto de diversão que tornava o intruso em alvo fácil, ou pedia a ajuda de um amigo para colaborar no serviço.


Não estou arrependido de ter estado naquela tropa.

 

Valeu a pena viver aqueles momentos e ver a camaradagem de muitos e dos soldados que estavam sempre voluntários para tudo, mesmo vivendo em condições menores e com muito pouco dinheiro.
 

publicado por Alto Chicapa às 13:39

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