Domingo, 21 de Dezembro de 2008

64- Epilogo / Destacamento

(continuação de 63- Três crianças no quartel)

 

Quem viveu em África nunca mais a esqueceu, dizem … e eu confirmo.
 

A três meses da mudança política verificada no dia 25 de Abril de 1974, a nossa companhia viveu uma nova fase da guerra devido à substituição do Comandante da Z.M.L. e às novas movimentações da U.N.I.T.A..


Apesar da operação Castor e de a ordem dada ser “Rapidamente e em força em cima de Savimbi”, este, mesmo assim, acabou por escapar para a Zâmbia.


Numa quinta-feira, de um dia do mês de Janeiro, que já não consigo precisar, foi-me entregue, em mão, uma mensagem, escrita num pedaço de cartão das rações de combate onde dizia, “o destacamento precisa de mais tropas, pode haver maka no sábado, cuidados na picada sul, ainda saber mais”.

 


 

António Cavula, a doze quilómetros do Alto Chicapa, era uma aldeia onde o nosso destacamento esteve instalado durante uns meses. Foi construído um pouco antes da entrada Oeste da povoação e ficava bem junto da picada.

 

A população mais influente, incluindo o soba, nunca se mostrou muito amistosa com a tropa.
Dizia-se, que ainda existiam muitas influências da F.N.L.A. na zona e entre Os Mais Velhos.
A nossa missão na aldeia estava terminada há algum tempo.
 

Os resultados estavam à vista de todos, a aldeia estava reconstruída com algumas casas novas e outras melhoradas, os caminhos restaurados, o depósito de água tinha voltado a ter água e a escola estava a funcionar com melhores infra-estruturas.
 

Sem que alguém se apercebesse da gravidade do que estava em vias de acontecer, preparou-se o nosso pequeno-almoço para mais cedo do que era habitual.
Ainda poucos sabiam que era a última refeição.
Mesmo assim, não deixámos de ter os miúdos à espera para levarem, o café com leite e o pão para a cubata.
Quando os soldados souberam que íamos regressar ao quartel, houve uma azáfama e uma rapidez invulgar no destacamento para arrumar os materiais. Ainda não eram nove horas, já estava tudo desmontado e empilhado, à espera da chegada da Berliet e do Unimogue.
 

- Como é, alferes?
- Diz, Vieira!
- Temos tudo pronto. E a viatura quando chega?
- É preciso calma. Aproveitem o pouco tempo que aqui vamos estar para descansarem.
- Oiçam bem o que vos digo … ninguém sai daqui para despedidas na aldeia!
- Mas alferes ….
- É uma ordem, depois falamos!
- Furriel! - Furriel Gomes, meta aí uma cunha.
- Parece que não ouviste bem!
- Não olhes assim para mim, se alguém sai daqui, vai tudo co’caralho … perceberam!
 

Chegámos ao quartel por volta da hora de almoço depois de uma viagem rápida e silenciosa.
 

O comandante de companhia quando chegou ao fim da tarde, vindo do Cacolo, ficou furioso com as informações que lhe transmiti e, ainda mais, com a minha saída do destacamento, que, diga-se, já estava mais ou menos prevista.
Com tudo o que ouvi, com uma nova ameaça de cinco dias de prisão, embora hoje isto já não tenha importância nenhuma, foi uma experiencia única na minha vida.
 

No dia seguinte, de manhã muito cedo, o capitão dirigiu-se, com outros da sua confiança, ao local. Foram atacados a rajadas de kalashnikov. Regressaram ao quartel sem ferimentos, embora um pouco desasados.
 

Em conclusão, acabei por ser o “bombo” daquela festa.
Mandou-me, escolher dez homens do meu grupo de combate e sair Domingo de manhã para patrulhar a área durante quatro dias.
Parti, para o meu novo castigo, com 10 voluntários, os do costume, o pessoal fixe, e um cão. Fomos para uma zona de mata que eu conhecia muito bem e que até nos possibilitava algum descanso.
Para nossa segurança, mas contra a vontade do Hamilton, mandei cancelar, até ao último dia, todos os contactos diários com o quartel.
 

O meu relatório da operação / patrulha, indicava que já não havia nada a assinalar na região e que a fuga de, mais ou menos, cinco indivíduos, três com botas militares, tinha sido feita ao longo da picada, na direcção da povoação de Cazoa.
Ainda acrescentei que a aldeia estava dividida na versão dos acontecimentos, numa versão, diziam que os guerrilheiros tinham vindo sob protecção da população, com a intenção de fazer sangue no destacamento e fugir rapidamente para a região do Dala, na outra versão, diziam que os guerrilheiros tinham vindo visitar familiares e ver as melhorias na sanzala. No entanto, ficou por dizer, a terceira versão dos acontecimentos, na boca de seis simpatizantes do M.P.L.A., que argumentavam estar tudo preparado para na lua nova haver um massacre nocturno no destacamento.
 

Umas semanas mais tarde, consegui obter um pouco mais de informação e conhecer melhor os contornos das eventuais intenções. Efectivamente, tudo estava a ser preparado há algum tempo com a conivência de algumas figuras da aldeia sob o pretexto de ser uma visita a familiares. Para além das flagelações às instalações enquanto os soldados dormiam, o grupo atacante iria dividir-se em dois, para na picada emboscar a coluna que eventualmente viesse em ajuda.
Passados dois meses, ainda consegui saber um pouco mais. O grupo era constituído por sete elementos, todos pertencentes à U.N.I.T.A., tendo dois deles ficado na aldeia sem as armas.
 

Depois daquelas obras todas, dos trabalhos de manutenção, da ajuda dos enfermeiros às populações, da actividade do Capelão e do Médico, dos tempos difíceis, do cheiro da morte e do apelo da guerra, sinto ainda, a magia daquelas gentes diferentes, a terra selvagem e bela, tudo o que nos fazia pensar com um permanente confronto de sentimentos e de emoções.
 

Ao fim de tantos anos, sem esquecer o sucedido, consigo perdoar, totalmente, a atitude miserável daquele soba, e interrogo-me, sobre:
• Os inúmeros sacrifícios, perdidos e destruídos, que ficaram por lá; e
• A razão da nossa Pátria, por quem demos, uns a vida, outros a saúde e outros a juventude, parecer querer esquecer-se de nós.
 

(a seguir - Epilogo / Fim da comissão)

 

publicado por Alto Chicapa às 12:16

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Domingo, 5 de Outubro de 2008

37- Primeiro passeio pelo exterior

(continuação de 36- O nosso aquartelamento)


No primeiro passeio que dei no exterior do quartel cruzei-me com um jovem, bem apresentado, talvez acima do normal para aquele meio. Tinha vindo buscar um papel com uma autorização do chefe de posto para poder transitar na mata.

 


Era um procedimento mais ou menos habitual nesta zona, mas o que me chamou a atenção era o que ele estava a fazer, a tratar da higiene oral, com um pequeno pau.


Não tinha água nem a nossa pasta dentífrica.


Este homem tinha uma fiada de magníficos dentes de esmalte branco, perfeitos, que contrastavam com a pele escura da cara. O pau que fazia de escova, com um comprimento mais ao menos de um pequeno lápis, tinha uma das extremidades afiada, para limpeza das cavidades e entre os dentes, e na outra extremidade, uma autêntica escova, constituída pelas fibras soltas da própria madeira que friccionava nos dentes.


Arranjei um pretexto para meter conversa e transmiti-lhe a minha ignorância, a surpresa e o espanto. Acho que se sentiu confiante. Ficou comunicativo e até me pareceu que se esbateram algumas barreiras sociais. Falava o português, bem melhor do que eu estava à espera.

 

Contou-me a história da escova de dentes, a razão da visita a uns familiares na sanzala do Cucumbi, a sua posição como professor / monitor na região, pago pelo estado português, e ainda a sua descendência de um antigo chefe de aldeia, quando ainda os havia com muita influência, dizia.


Ficámos amigos, quase verdadeiros, do tipo instantâneo.

 

Penso que foram as diferenças sociais que nos ligaram ao essencial. Nunca esperámos nada um do outro, apenas o privilégio de beber umas cervejas ao sábado na loja do Sr. Capela e estar à conversa pela noite dentro.

 

O P. (não é P. de professor) nunca me questionou sobre a nossa actividade militar em Angola, mas gostava de saber coisas de Portugal e em especial do meu envolvimento na vida académica em Lisboa. Tudo lhe contei sem omissões, inclusive a minha posição perante a política e aquela guerra. Em dado momento, já com meia dúzia de cervejas saboreadas, confidenciou-me que tinha um sonho, se um dia fosse para Portugal, ia perder-se de amores por uma mulher branca, mas peluda.


Passados alguns dias, encontrei-o em plenas funções, na sua escola, na Sanzala do Camachilonda onde me fez contar uma história, das de Portugal, daquelas para miúdos (contei a história da padeira de Aljubarrota, que não era bem para miúdos, mas adoraram) e uns meses depois em António Cavula, onde estava um seu familiar com a categoria de monitor, embora também fosse um misto de professor e enfermeiro, fez-me repetir a história.


Ao longo deste documento vou contar como, em Fevereiro de 1974, este amigo me mostrou porque era verdadeiro, a forma como de forma desinteressada ajudou o meu grupo de combate ou me protegeu nas minhas viagens solitárias, do Alto Chicapa ao nosso destacamento de António Cavula e vice-versa.


Nessa data, já sabia que o P. e o primo estavam próximos do MPLA e que a população maioritariamente apoiante da UNITA, tinha familiares guerrilheiros. Entre os mais velhos também havia alguns simpatizantes da FNLA.


Ele e o primo, foram amigos verdadeiros, e para toda a vida, que deixei e não voltei a ver, no entanto aparecem assim, acidentalmente tirados do fundo de uma qualquer gaveta ou da minha memória onde estão arquivados, à luz do mais genuíno e feliz dos meus dias nas relações entre as pessoas.
 

publicado por Alto Chicapa às 10:25

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