Quinta-feira, 13 de Novembro de 2008

50- Já passei por aqui e um condutor nervoso

(continuação de 49- Uma jiboia e o ataque do Buda)

 

Nas 79 operações e patrulhamentos que o 1º grupo de combate realizou, onde não houve mortes, feridos ou acidentados, conhecemos dificuldades e muitas contrariedades, mas a sorte nunca nos abandonou porque fomos sempre audazes, disciplinados e prudentes.
Restaram, para recordar, algumas situações curiosas, como por exemplo:


O dia, em que numa operação estivemos a passar no mesmo sítio, uma vez, duas vezes, e à terceira … ouve-se o furriel Gomes, em voz alta: - Porra ... já passei por aqui!
Efectivamente tínhamos estado a andar em círculo.

 

O nervoso que se apoderou de um condutor, que por castigo, foi obrigado a participar numa operação.

O meu grupo de combate calejado naquelas andanças não ligou à situação e considerou-o como sendo mais um.
O primeiro dia começou logo por não ser nada fácil, enjoou durante a deslocação, estava transparente e no ponto de largada reparou-se que não tinha levado a arma nem as cartucheiras.
Ali, na mata, o nível de camaradagem tinha o seu valor mais alto e tudo se resolveu rapidamente sem mais humilhações … no final da operação parecia outro, tinha gostado e já assobiava como os passarinhos.
 

(a seguir - Um fim-de-semana antes do Natal)

 

publicado por Alto Chicapa às 13:32

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Segunda-feira, 10 de Novembro de 2008

49- Uma jiboia e o ataque do Buda

(continuação de 48- Formigas quissongo e a fuga dos carregadores)

 

Nas 79 operações e patrulhamentos que o 1º grupo de combate realizou, onde não houve mortes, feridos ou acidentados, conhecemos dificuldades e muitas contrariedades, mas a sorte nunca nos abandonou porque fomos sempre audazes, disciplinados e prudentes.
Restaram, para recordar, algumas situações curiosas, como por exemplo:


A operação realizada na margem esquerda do rio Chicapa onde fomos confrontados com uma grande cobra.
Acampámos numa zona mais elevada onde começava o arvoredo, sempre o local mais seguro.
Quando um grupo nos ia abastecer de água com os cantis, ficaram estáticos a meio do percurso e frente a frente com um monstro de cabeça levantado à altura de um homem.
O Cassiano, o último do grupo voltou atrás a pedir ajuda.
Estávamos a ser postos à prova numa situação que era inédita e que teve que ser tratada com pinças.
Com algum sangue frio, abati o animal com dois tiros na cabeça, um ao lado do outro.
Mais calmos, e passada a surpresa, confrontámo-nos com uma jibóia, de seis / sete metros de comprimento e palmo e meio de largura, um bicho lindo e respeitável, daqueles que só se vêm nos filmes.
Sem o sabermos, a sorte esteve do nosso lado, porque só não fomos atacados ou mordidos devido ao facto de a cobra estar com uma cabra inteira dentro da barriga, com cornos e tudo.
No final, aproveitou-se tudo e até provei um bifinho, que sabia a peixe de rio.
Não sou, nem nunca serei, um caçador de troféus, mas guerra é guerra, ou se mata ou se morre.

 

O ataque do meu cão Buda sobre três nativos que tentavam passar dissimulados.
Estávamos muito afastados do nosso quartel, junto à nascente do rio Chiumbe, numa zona de guerra onde era proibida a circulação de civis.
Quando percorríamos um trilho, e num abrir e fechar de olhos, o cão sai disparado sobre três indivíduos, hoje já não me lembro bem como é que isto tudo acabou, mas ainda me recordo que conforme o cão avançava ouviam-se vários gritos, Buda euá, Buda euá, Buda euá … (Buda vai-te embora).
Entendi que conheciam o cão, mas nunca cheguei a perceber a ausência de tiros e a nossa permissão para aquela fuga.
Hoje, sinto que o Buda, um cão conhecido e temido na nossa zona, foi bom para nós e para eles.
 

( a seguir - Já passei por aqui e um condutor nervoso)

 

publicado por Alto Chicapa às 14:57

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Quarta-feira, 5 de Novembro de 2008

48- Formigas quissongo e a fuga dos carregadores

(continuação de 47- Perdidos na mata)

 

Nas 79 operações e patrulhamentos que o 1º grupo de combate realizou, onde não houve mortes, feridos ou acidentados, conhecemos dificuldades e muitas contrariedades, mas a sorte nunca nos abandonou porque fomos sempre audazes, disciplinados e prudentes.

 

Restaram, para recordar, algumas situações curiosas, como por exemplo:
 

O dia em que fomos invadidos e atacados pela quissongo.

É uma formiga com o corpo fino e avermelhado, uma cabeça relativamente grande e duas fortes mandíbulas que se cravam facilmente na carne.
Ela é persistente, consegue ultrapassar cursos de água e só não resiste ao fogo.

O ser humano e outros animais, por mais ferozes que sejam, podem ser devorados vivos.
 

Inadvertidamente, tínhamos parado num dos seus territórios. Lentamente, começaram a andar pelo interior das nossas calças, botas e pernas acima e de uma forma que parecia telecomandada somos mordidos violentamente e quase em simultâneo, parecia uma descarga eléctrica.
A aflição instalou-se, foi necessário tirar as roupas para aliviar as dolorosas ferroadas e retirar as formigas, uma a uma, que teimavam sempre em continuar agarradas à carne quando as arrancamos.
Normalmente, o corpo da formiga sai bem mas o conjunto da cabeça e as mandíbulas, é que continua no nosso corpo com as pinças pontiagudas cravadas.

 

 

A noite da fuga de dois carregadores quando numa operação junto ao rio Cassai nos deslocámos para um local que lhes causava medo.
Nunca imaginei a fuga de alguém em plena mata, mas também não fiquei admirado com o acontecimento.
Já me tinha apercebido que os carregadores andavam nervosos com o itinerário, faziam de tudo para o evitar, diziam-se doentes, sem forças, e que estavam em lugares de feitiço.


Acabou por ficar o carregador principal, o Sá Moço e mesmo assim com muitas dores de dentes.
Devido às fugas, não acreditámos nas suas queixas e como julgávamos que era um outro esquema manhoso o enfermeiro deu-lhe um comprimido laxativo.
No dia seguinte, perguntei: - Então Sá Moço? – Cá, os barriga! O pessoal ria-se com a maldade e perguntavam-lhe: - Sá Moço, vai mais um comprimido?

Enfim, hoje ainda tenho remorsos, porque também colaborei.
 

Em conclusão, o bom do Sá Moço tinha mesmo dores de dentes, que, imagino, deveriam ser muito intensas.

Para se livrar daquele tormento meteu na boca uma rudimentar faca e arrancou, assim sem mais nem menos, e pela raiz, um grande dente cariado.
Foi uma grande lição.
 

(a seguir - Uma jiboia e o ataque do Buda)

 

publicado por Alto Chicapa às 15:16

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Domingo, 2 de Novembro de 2008

47- Perdidos na mata

(continuação de 46- Formigas térmites e duas matacanhas)

 

Nas 79 operações e patrulhamentos que o 1º grupo de combate realizou, onde não houve mortes, feridos ou acidentados, conhecemos dificuldades e muitas contrariedades, mas a sorte nunca nos abandonou porque fomos sempre audazes, disciplinados e prudentes.


Restaram, para recordar, algumas situações curiosas, como por exemplo:


O dia em que me perdi na mata.

Quando decorria a nossa terceira operação, sem saber bem como, em determinado momento deixei de ter locais para referência, o mapa não conseguia ajudar, os carregadores só queriam voltar para trás, e não havia meio de se encontrar um trilho ou um simples regato.
À nossa volta, havia um denso e alto arvoredo e um terreno arenoso sem vegetação rasteira e água. Nunca consegui encontrar uma explicação para o que nos aconteceu.
Ao quinto dia já andávamos a comer ração de combate a meias, algumas folhas e umas frutas parecidas com laranjas.
Ao sexto dia, sem comida e com alguns raspanetes do capitão via rádio, lá conseguimos chegar a um pequeno curso de água que nos orientou e nos permitiu após uma longa caminhada chegar à picada de Luma-Cassai.
Com as coordenadas certas solicitei a recolha do grupo.

Em conclusão, fomos recolhidos em estado miserável e esfomeados ao princípio da tarde do sétimo dia, sem uma única resposta às nossas mensagens via rádio.
A fome e a falta de cigarros, para alguns, foi uma experiência horrível.
Quando chegámos ao quartel as palavras de conforto e de ânimo que estavamos à espera foram substituídas pela seguinte frase:

- Daqui a três dias vai novamente para a mata!
Foram momentos de desconforto, talvez piores do que uma emboscada do IN, mas já estava habituado a tudo e facilmente encarava as situações difíceis como desafios.

 

A operação entre dois rios, o Cuilo e o Luchico, onde o meu cão Buda desapareceu durante dois dias.

Foram momentos muito difíceis e intrigantes.

Temíamos o pior, pensávamos que podia ter sido comido por uma onça, mordido por uma cobra ou ter caído numa armadilha, enfim, só de me lembrar, fico arrepiado.
Tudo fizemos para o encontrar, alterámos o esquema da operação, os itinerários, retardámos os nossos movimentos, parámos e deixávamos bem expostos uma quantidade de cheiros e materiais, que ele muito bem conhecia.
Tudo parecia terrível e angustiante, mas era uma situação que mais dia, menos dia eu imaginava que pudesse acontecer.
Ao cair da tarde, íamos para a segunda noite de angústia, o Teixeira que estava numa sentinela mais avançada deu um sinal de alerta e de perigo, parecia que alguém vinha a rastejar. Movimentamo-nos em auto defesa, mas acto contínuo houve-se o Novo e o Canelas a gritarem: - Calma pessoal, pessoal é o Buda, é o Buda. Buda, vem!
Logo que ouviu o seu nome levantou-se, avançou e demonstrou todo o seu contentamento. Parecia muito cansado e magro, mas a sua felicidade era enorme. Nós, entre festejos e algumas lágrimas de contentamento também tínhamos saído de um pesadelo.
 

(a seguir - formigas quissongo e a fuga dos carregadores)

 

publicado por Alto Chicapa às 10:36

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Quarta-feira, 29 de Outubro de 2008

46- Formigas térmites e duas matacanhas

(continuação de 45- Operação "Pato 7212", sexto dia)

 

Das 79 operações e patrulhamentos que o 1º grupo de combate realizou, onde não houve mortes, feridos ou acidentados, recordo meia dúzia de situações curiosas, como por exemplo:

  • O dia do ataque das formigas térmites, que durante uma noite comeram silenciosamente parte do meu pano de chão, um pouco das minhas calças, os elásticos das cuecas (uma espécie de boxers à antiga) e o fundo do meu saco mochila.
  • O dia em que soube que tinha duas matacanhas no pé direito, uma no calcanhar, quase do tamanho de uma ervilha, e outra muito mais pequena debaixo da unha do dedo grande. A matacanha é uma espécie de pulga penetrante. Naquela época, os nativos eram os únicos e os verdadeiros médicos especialistas no tratamento destes parasitas. Um pouco a medo, lá mostrei o meu pé a um indivíduo da sanzala que confirmou que eu tinha dois ninhos de matacanha. Fez uma pequena intervenção cirúrgica com um rudimentar pau muito bem afiado na ponta e desinfectado a fogo. Com muito jeito, tirou uns sacos sem os romper. Continham, o respectivo animal e umas centenas de ovos. Para a posteridade ficaram apenas dois pequenos orifícios no pé, sob a camada da pele, sem nunca chegarem a sangrar. No final, encheu os buracos com cinza retirada de uma fogueira. Posteriormente, com a ajuda do enfermeiro Luís e do Dr. Vila Verde os ninhos sararam em pouco tempo.
  •  

(a seguir - Perdidos na mata)

 

 

 

publicado por Alto Chicapa às 14:33

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Segunda-feira, 27 de Outubro de 2008

45- Operação "Pato 7212", sexto dia

(continuação de 44- Operação "Pato 7212", quarto e quinto dia)

 

Ao sexto dia, pelas treze horas, chegámos ao ponto de recolha numa zona plana e de vegetação dispersa.

 

Patrulhámos em círculo a área envolvente e avançávamos o máximo possível ao longo da picada.

 

 

O deserto humano e a ausência de vestígios mantinham-se.

 

Tal como tinha acontecido na largada, a recolha era feita por três ou quatro Unimogues ou por uma Berliet e dois Unimogues e mais cinco militares para protecção às viaturas.

 

Sentia-me muito à vontade e sem medo em plena selva africana, inclusive até conseguia compensar alguma alimentação enlatada por outro tipo de alimentos mais frescos e calóricos, mas as deslocações na picada alteravam de forma inexplicável o meu estado de anímico e eram o momento que mais temia.


A estadia na mata transformava a nossa aparência. Ficávamos irreconhecíveis, mal cheirosos, a barba por fazer, cansados, mal alimentados e carentes de um sono descansado numa cama.
Quando estávamos integrados no grupo e a conviver diariamente não se prestava atenção à transformação, íamo-nos habituando à degradação progressiva da nossa imagem, e só dávamos conta dos estragos reais quando regressados ao quartel íamos a um espelho.
 

(a seguir - formigas térmitas e duas matacanhas)

 

publicado por Alto Chicapa às 09:55

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Quinta-feira, 23 de Outubro de 2008

44- Operação "Pato 7212", quarto e quinto dia

(continuação de 43- Operação "Pato 7212", segundo e terceiro dia)

 

O quarto e o quinto dias foram os melhores. Sossego absoluto.


Se não estivéssemos em guerra, diria que tinha sido um percurso turístico, tanta era a beleza da região. Andámos durante toda a manhã sob um sol escaldante e compensávamos o intenso calor com travessias refrescantes dos pequenos afluentes do rio Cuango. A vegetação, era, geralmente, muito densa e de difícil penetração o que nos permitia encontrar locais seguros e muito propícios para recuperar as forças e passar o resto do dia e a noite.

 


Foi nestes dois dias que os meus olhos viram as melhores imagens da selva africana, e que nenhuma máquina fotográfica daquela época poderia mostrar completamente.

 


Num local, onde o leito do rio e o caudal aumentavam substancialmente e o manso murmúrio da água corrente contrastava com umas impressionantes quedas de água, vi plantas até aqui nunca vistas, árvores de grande porte, frutos desconhecidos e muita vegetação a transformar o chão num imenso e garrido tapete verde.

 

 

Também vi, peixes bem junto à margem, sem medo algum dos humanos e imensos peixinhos pequeninos muito coloridos, que pensava só existirem em aquários.

 

Para além do rugido dos leões, fomos ainda contemplados com três elefantes num trajecto muito lento e elegante, de uma onça a fugir, de uma grande família de javalis, de bandos de macacos cão muito agressivos, grandes cágados, ratos voadores com uma membrana entre a pata dianteira e traseira que lhes dava a capacidade de planarem do topo das árvores até à base de outra, voltavam a trepar e a planar, uma grande cobra e inúmeras cabras do mato, uma espécie animal muito abundante na região, que era mais uma espécie de gazela cuja estatura seria um pouco maior do que a das cabras na metrópole.


Era uma região idílica, onde reinava uma paz de espírito repousante e que convidava ao sonho.

 


O levantamento do acampamento era feito muitas vezes ainda sem sol, desmontávamos os panos das tendas, arrumávamos os sacos mochilas e disfarçávamos os vestígios da nossa presença. As latas vazias e o lixo era colocado num buraco, coberto com terra e folhas.

 

Era uma atitude que só nos convencia a nós, era do tipo gato escondido com rabo de fora, porque nunca era possível repor imediatamente o aspecto natural do local ou eliminar totalmente os vestígios deixados e as clareiras abertas pelo nosso calcar na vegetação.
 

(a seguir - Operação "Pato 7212", sexto dia)

 

publicado por Alto Chicapa às 11:41

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Domingo, 19 de Outubro de 2008

42- Operação "Pato 7212", primeiro dia

(continuação de 41- Os preparativos da operação "Pato 7212")


No primeiro dia, começámos por chegar ao local da largada, por volta das seis horas.

 

Depois de reconhecido o local, seguimos, em coluna, na direcção do primeiro objectivo ao longo de um antigo trilho.

 


Os carregadores desta operação (pagos pelo exército), eram três homens nativos da aldeia de Samuge. Um, com mais de 40 anos, o Sá Moço, o carregador de todas as minhas operações, em quem eu sempre confiei, e outros dois, que nunca eram os mesmos das operações anteriores, aparentavam ser muito jovens.


À frente, ia o meu cão Buda, um pastor alemão, muito desejado por todos e que actuava melhor do que um pisteiro da mata, num frenético vai e vem.

 

 

Logo a seguir, com distâncias de dois a três metros entre cada homem, ia o Freitas (quase sempre o primeiro), o Nuno, e eu, seguidos pelo restante pessoal. Entre cada furriel havia uma secção. Os carregadores eram espalhados aleatoriamente ao longo da coluna.


A progressão inicial fez-se com relativa facilidade até entrarmos na zona de floresta densa, precisamente uma das áreas assinaladas como de contacto iminente.


Estávamos próximos da nascente do rio Cassai, o nosso primeiro objectivo.


Saímos do trilho e passámos a caminhar em zonas de vegetação mais densa, com alguns movimentos de diversão e muitas vezes com a necessidade de abertura de caminhos.


Sabia que estávamos nas proximidades da zona do 3º batalhão da FNLA, de onde foram afastados em Julho de 1972, cerca de 70 guerrilheiros bem armados, em consequência da operação Rojão IH.
Neste tipo de locais onde a probabilidade de contacto com o IN era maior, os carregadores ficavam muito nervosos e medrosos e os mais inexperientes chegavam mesmo a fugir como nos aconteceu numa operação realizada entre um afluente do rio Chicapa e a nascente do rio Chiume.


Parámos ao princípio da tarde numa zona limítrofe da densa vegetação, muito próximo de uma linha de água que parecia ser suficiente para o nosso abastecimento.


Não havia vestígios de passagem de humanos.

Após tantas horas de marcha, tudo indicava que era o sítio certo para recuperar forças e para pernoitar.
 

Chamei o Sá Moço e perguntei-lhe:
- É bom?
- É bom mesmo, não tem turra!

 

O Sá Moço era uma força da natureza, que fiquei a admirar para o resto da minha vida. Nunca conheci ninguém assim. Não era um homem muito falador, mas percebia um pouco da nossa língua. Era honesto, amigo quanto baste, respeitador, inteligente e auto-suficiente.
Um autêntico sobrevivente.

 

Nunca precisou, de usar:

  • Fósforos ou isqueiro. Usava pauzinhos de fricção e uns fios de madeira parecidos com a corda de sisal;
  • Cordas. Encontrava-as em lianas e cascas de árvores;
  • Tenda. Criava os seus próprios abrigos com os materiais existentes no local;
  • Remédios. Encontrava-os entre folhas, raízes e cascas de árvore;
  • Sabão. Substituía-o por folhas e uma espécie de argila;
  • Escova de dentes. Usava um pequeno pau, que até deixava os dentes brancos;
  • Ração de combate. Encontrava tudo na mata, folhas, frutos, cogumelos, cágados, cobras, ratos, gafanhotos, formigas; e
  • Mapa de orientação. Conseguia orientar-se com quase tudo, inclusive com a estrutura do solo, e ainda, uma coisa incrível, com o voo de alguns pássaros.

Tinha sempre uma forma muito particular de estar. Reagia imediatamente às situações mais complicadas como um autêntico senhor e contava histórias inacreditáveis. Na mata, ao lado deste homem, eu era, apenas, um dependente de uma sociedade que nunca ensinou ninguém a sobreviver quando faltam certas mordomias.


Colocámos as sentinelas dois a dois, por períodos curtos. Limpámos a área e montámos com os panos de tenda um pequeno acampamento. Acordámos que, não faríamos fogo com fumo, evitávamos as conversas com barulho e não chamávamos o cão Buda.

 

 

Decidimos, que de manhã, iríamos bater a margem direita em círculo, mudar para lá o acampamento, ficar mais um dia e estar atentos a algum movimento no anterior local.


Hoje, estou convencido, com o vento a favor, se houvesse turras nas redondezas viriam a correr ter connosco, porque o cheiro a comida, das nossas latas da ração de combate depois de aquecidas, deveria espalhar-se por uma vasta área.
Lembrei-me da fuba a secar nas aldeias, uns bons quilómetros antes, já cheirava.


O Hamilton era o nosso, e impecável homem das transmissões. Nunca se esquecia das suas obrigações. Apenas gaguejava quando lhe aparecia o capitão em linha, e de tal forma ficava nervoso que nem a cantar conseguia falar. Francamente, poucas vezes me preocupei com este tipo de liderança imposta pelo medo.

 

Lembro-me do dia em que o Hamilton estava de serviço à porta de armas do quartel.

Quando passei, com a minha mulher, disse-me:
– Alferes, tenho aqui chouriço do puto.
Fazia o gesto, a abanar a mão direita metida nas calças e a agarrar um grande enchumaço. Fiquei meio atrapalhado com o gesto, mas também foi com espanto que o vi tirar do bolso uma grande chouriça.
– Alferes foi a minha mãe que enviou lá da terra, esta é para si.
 

Depois de um longo e nervoso dia numa região que tinha sido o refúgio da FNLA, até meados de 1972, descansei, como nunca, sobre um montão de folhas secas e na companhia de um cão que parecia nunca dormir.
 

Mesmo com muito frio, a noite passou-se bem.
 

(a seguir - Operação "Pato7212", segundo e terceiro dia)

 

publicado por Alto Chicapa às 12:45

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Quinta-feira, 16 de Outubro de 2008

41- Os preparativos da operação “Pato 7212”

(continuação de 40- Calejamento dos grupos de combate)


Calharam-me seis dias na mata com o meu grupo de combate na operação “Pato 7212”.

  • Ordem: Patrulhamento ofensivo, para identificação, detecção e divulgação de grupos IN, preparar e colaborar na sua perseguição, captura ou aniquilamento, recuperar população e destruição de meios de vida do IN.
  • Largada: Picada Alto Chicapa / Luma-Cassai junto ao rio Cassai.
  • Recolha: Picada Alto Chicapa / Cuango junto ao rio Cuango.
  • Região: Margem esquerda do rio Cassai até à sua nascente e margem direita do rio Cuango desde a sua nascente até ao cruzamento com a picada (ponto de recolha).
  • Duração: De 04 de Dezembro de 1972 às 05,00horas, até às 16,30 horas do dia 09.
  • Meios: Um grupo de combate com 17 homens, um cão, espingardas G3 e 100 munições / homem, algumas granadas de mão defensivas e 03 nativos / carregadores vindos da aldeia de Samuge.
  • Distância: 46 quilómetros (ponto de largada / ponto de recolha).

Na véspera de todas as operações, era meu hábito, reler os aerogramas particulares que me chegavam de Luanda com alguns destaques sobre a actividade do IN, ler a documentação oficial que recomendava a saída para a mata, e estudar, anotar e segmentar o percurso numa carta topográfica da região.


Ao jantar, alguns soldados questionaram-me sobre a saída de seis dias, em vez de cinco, e a razão de irmos para o rio Cassai com poucos homens, para uma zona tão perigosa.


Um condutor também me abordou sobre a saída.

– Então alferes, amanhã lá vão dar um passeio até ao Cassai!


Pensei: - Se toda esta gente na Companhia, sabe com antecedência aquilo que vamos fazer, também os carregadores e os turras o devem saber. Arriscamo-nos a ter alguma surpresa desagradável.


Falei com capitão sobre esta falta de confidencialidade, e a atenção que a zona merecia. 

 

Mesmo assim, com o ar mais inocente do mundo, garantiu-me:
- Ninguém sabe da operação.
- Só eu é que sei a zona para onde vão e como a área da nossa Companhia é um território quase tão grande como o Alentejo, o risco é mínimo.
- O que dizem, é coisa que não me tira o sono.
- Até pensei que me ia dizer alguma coisa importante ou mais séria!
- Ainda lhe digo mais, mesmo o saber-se que vai haver, uma operação, não é um factor de insegurança é uma vantagem a nosso favor.
- O inimigo pensa sempre duas vezes antes de se aventurar no nosso território ...


Achei que não valia a pena continuar a participar naquele monólogo, estava a … sentir-me muuuito buuurro!


Mesmo assim, já feito burro, ainda argumentei:
- O pior, é se eles pensam quatro vezes e ficam à nossa espera prontos para as boas-vindas?


Encolhi os ombros e aceitei aqueles argumentos, afinal era uma teoria como qualquer outra.


Durante a noite trovejou e relampejou violentamente.

 

Porém ao início da operação sentia-se que o calor aumentava gradualmente de intensidade e as chuvas caíam algures mais para norte do local onde tínhamos sido largados.

O cheiro a terra molhada, era muito agradável e representava o rejuvenescimento da vida das plantas, dos animais e a força da natureza.


Dizia-me um soldado:

- Alferes Santos, a mata é muito agradável mas também transmite medo. Não se houve nada à nossa passagem, nem um ronco de um animal, nem um piar de um pássaro.
 

Tal como previra, a zona por onde andei, durante seis dias no meio de uma mata densa e em alguns locais de difícil penetração, numa área junto aos rios Cassai e Cuango, era uma zona, vizinha do acantonamento da UNITA (estávamos em pacto de não agressão) e da passagem do MPLA e FNLA para o norte de Angola (a maioria tinha regressado às bases na Zâmbia e no Zaire).
 

(a seguir - Operação "Pato 7212", primeiro dia)

publicado por Alto Chicapa às 15:32

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Domingo, 12 de Outubro de 2008

39- Chuva diluviana

(continuação de 38- Missão humanitária)

 

Estava no meu quarto a ler um livro, A Selva, de Ferreira de Castro, e a ouvir música gravada, quando a luz do gerador desapareceu após um valente relâmpago.


A escuridão da noite, a violência da trovoada, mesmo por cima de nós, o abanar do chão e a infernal barulheira da chuva diluviana sobre as chapas de zinco deixava o mais pacato a pensar.


A meio da manhã, ainda debaixo de chuva, com um céu muito cinzento e carregado de nuvens escuras, recebemos a informação de que a região continuaria até ao fim da tarde sob um violento temporal.

 


Foram horas e horas de trovoada e de chuva persistente.


Nunca tinha visto nada assim. Em qualquer cidade seria uma catástrofe.


Toda a área do aquartelamento ficou transformada num enorme pantanal, as picadas cortadas em vários sítios, pontes destruídas e a pista do avião interdita. Este dilúvio também nos deixou mais pobres. Ficamos sem o abastecimento semanal de frescos  e o correio, tão desejado.


Tirando as rotinas normais de um quartel no meio da mata, passámos parte do tempo à conversa, a jogar, a ler ou a escrever.
 

publicado por Alto Chicapa às 12:02

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Quinta-feira, 9 de Outubro de 2008

38- Missão humanitária

(continuação de 37- Primeiro passeio pelo exterior)

 

A minha primeira saída em missão, foi humanitária. Aconteceu ao princípio de uma noite do mês de Outubro de 1972, mas de um dia que já não consigo identificar no calendário.


Um homem da aldeia de Samuchima solicitou ao comandante de companhia ajuda urgente para socorrermos uma mulher que estava em trabalho de parto há demasiado tempo, no meio de grande sofrimento e preocupação dos familiares.


Fui num jipe Williams bem velhinho na companhia de um condutor e do enfermeiro Luís.

 


Pelo caminho o enfermeiro Luís dizia que nunca tinha feito ou ajudado num parto nem tinha material próprio. Perguntei-lhe: - E porquê um alferes miliciano de minas e armadilhas?


Mesmo assim, senti-me na obrigação de tentar o melhor, com a ajuda e os conhecimentos do enfermeiro, e assistir pela primeira vez na minha vida a um parto natural, sem condições de higiene e conforto.

 


Quando chegámos, já era noite escura, e o ambiente não era nada simpático.

 

Tudo estava a acontecer numa palhota pequena de chão térreo, em cima de uma esteira e à luz de um escuro candeeiro de petróleo.

 

Havia muitas mulheres de volta em grande ladainha. O pai da criança já tinha fugido com medo das represálias da família da mulher.


- Luís, acho que só fomos chamados para aqui em desespero de causa.
- Bem, temos que fazer alguma coisa para melhorar isto!
- Vou pedir para que estas mulheres se afastem um pouco e com os faróis do Jipe, junto à porta, vai haver mais luz lá para dentro.
 

O Luís tomou a iniciativa e dirigiu-se à jovem parturiente. Vendo que no local havia cinza, terra e excremento de cabra espalhados, solicitou a duas mulheres que estavam com ela um pouco mais de limpeza no local e tratou de a desinfectar o melhor possível.
Com os dedos das mãos, (não havia luvas) tentámos “alargar e abrir espaço” para a criança nascer com mais facilidade. Mas tudo correu mal, mesmo com a muita coragem daquela mãe.
 

Aquele filho não queria nascer.
 

- Luís, na faculdade falava-se em partos provocados com soro, vamos tentar?
- Pela manhã logo se vêm os resultados!
 

Informei o chefe da aldeia e as mulheres das nossas intenções, do regresso ao quartel e do que estava feito. Pedi, para ajudarem a futura mãe numa situação grave ou quando a criança estivesse mesmo para nascer.


No povo quioco, logo que uma mulher sente os primeiros sintomas do parto, pede à mãe ou a outra mulher da família que chame a parteira (tchifungudji) e todas as mulheres que já tiveram filhos, para que auxiliem em tudo o que for necessário.
Os homens, as crianças e ainda as mulheres que tiveram relações sexuais no dia anterior não podiam assistir ao parto.


A parturiente senta-se numa esteira costas com costas com uma outra mulher, a ajudante, que lhe entrelaça os braços prendendo-a contra si. A parteira fica sentada em frente a dar continuadamente instruções.


Conforme me contaram, depois do nascimento, mais ninguém pode mexer na criança, só a ajudante e a parteira lhe podem pegar. Cortam e atam o cordão umbilical, lavam-na em água morna e entregam-na definitivamente à mãe. Esta recebe um copo de água para beber e borrifar o filho, dizendo, mais ou menos isto, para que fiques bonito e forte. No dia seguinte, há uma espécie de baptismo imunizante, que é feito por todas as crianças da aldeia com raízes, que esfregam na criança, afastando assim todos os feitiços e os males. É a partir deste momento que qualquer outra mulher poderá pegar na criança (continuam a ficar de fora as mulheres com relações sexuais efectuadas no dia anterior, porque são consideradas impuras).


Ao terceiro dia, é feriado na aldeia e dia de festa. A parturiente lava-se no rio, na altura mais quente do dia, pedindo à água que lhe dê forças e frescura. É neste dia que o pai dá um nome ao filho. O nome pode ser o de um seu antepassado, de um amigo ainda vivo, ou de um acontecimento importante que se tenha passado no dia do nascimento. Além do nome dado pelo pai ainda pode ter outro dado pela mãe, pela família desta ou pelo chefe da aldeia.
Logo que o filho recebe o nome, os pais acrescentam ao seu, o do filho, precedido de Sá, no pai, e de Ná, na mãe.
No entanto, só no acto da circuncisão, nos rapazes, ou da iniciação, nas raparigas, é que o verdadeiro nome do indivíduo será escolhido.
 

De manhã cedo quando chegámos à aldeia a criança já cá estava fora e com o cordão umbilical cortado pela parteira. Era um rapaz. Ficámos contentes com a nossa sorte e com o fim feliz daquela mãe.


O miúdo ficou a chamar-se Carlos Nosalferes.
 

 

Éramos jovens e culturalmente muito diferentes daquele povo, mas iguais perante o sentimento simples de ver nascer uma criança.


Aprendi, que nascemos iguais e até com a mesma cor, e que as dores de uma mãe são as mesmas, e que a aflição e o sucesso de um parto são suficientes para esquecer ódios ou guerras.
 

publicado por Alto Chicapa às 10:41

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Domingo, 5 de Outubro de 2008

37- Primeiro passeio pelo exterior

(continuação de 36- O nosso aquartelamento)


No primeiro passeio que dei no exterior do quartel cruzei-me com um jovem, bem apresentado, talvez acima do normal para aquele meio. Tinha vindo buscar um papel com uma autorização do chefe de posto para poder transitar na mata.

 


Era um procedimento mais ou menos habitual nesta zona, mas o que me chamou a atenção era o que ele estava a fazer, a tratar da higiene oral, com um pequeno pau.


Não tinha água nem a nossa pasta dentífrica.


Este homem tinha uma fiada de magníficos dentes de esmalte branco, perfeitos, que contrastavam com a pele escura da cara. O pau que fazia de escova, com um comprimento mais ao menos de um pequeno lápis, tinha uma das extremidades afiada, para limpeza das cavidades e entre os dentes, e na outra extremidade, uma autêntica escova, constituída pelas fibras soltas da própria madeira que friccionava nos dentes.


Arranjei um pretexto para meter conversa e transmiti-lhe a minha ignorância, a surpresa e o espanto. Acho que se sentiu confiante. Ficou comunicativo e até me pareceu que se esbateram algumas barreiras sociais. Falava o português, bem melhor do que eu estava à espera.

 

Contou-me a história da escova de dentes, a razão da visita a uns familiares na sanzala do Cucumbi, a sua posição como professor / monitor na região, pago pelo estado português, e ainda a sua descendência de um antigo chefe de aldeia, quando ainda os havia com muita influência, dizia.


Ficámos amigos, quase verdadeiros, do tipo instantâneo.

 

Penso que foram as diferenças sociais que nos ligaram ao essencial. Nunca esperámos nada um do outro, apenas o privilégio de beber umas cervejas ao sábado na loja do Sr. Capela e estar à conversa pela noite dentro.

 

O P. (não é P. de professor) nunca me questionou sobre a nossa actividade militar em Angola, mas gostava de saber coisas de Portugal e em especial do meu envolvimento na vida académica em Lisboa. Tudo lhe contei sem omissões, inclusive a minha posição perante a política e aquela guerra. Em dado momento, já com meia dúzia de cervejas saboreadas, confidenciou-me que tinha um sonho, se um dia fosse para Portugal, ia perder-se de amores por uma mulher branca, mas peluda.


Passados alguns dias, encontrei-o em plenas funções, na sua escola, na Sanzala do Camachilonda onde me fez contar uma história, das de Portugal, daquelas para miúdos (contei a história da padeira de Aljubarrota, que não era bem para miúdos, mas adoraram) e uns meses depois em António Cavula, onde estava um seu familiar com a categoria de monitor, embora também fosse um misto de professor e enfermeiro, fez-me repetir a história.


Ao longo deste documento vou contar como, em Fevereiro de 1974, este amigo me mostrou porque era verdadeiro, a forma como de forma desinteressada ajudou o meu grupo de combate ou me protegeu nas minhas viagens solitárias, do Alto Chicapa ao nosso destacamento de António Cavula e vice-versa.


Nessa data, já sabia que o P. e o primo estavam próximos do MPLA e que a população maioritariamente apoiante da UNITA, tinha familiares guerrilheiros. Entre os mais velhos também havia alguns simpatizantes da FNLA.


Ele e o primo, foram amigos verdadeiros, e para toda a vida, que deixei e não voltei a ver, no entanto aparecem assim, acidentalmente tirados do fundo de uma qualquer gaveta ou da minha memória onde estão arquivados, à luz do mais genuíno e feliz dos meus dias nas relações entre as pessoas.
 

publicado por Alto Chicapa às 10:25

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Sexta-feira, 3 de Outubro de 2008

36- O nosso aquartelamento

(continuação de 35- As sentinelas)

 

O nosso novo aquartelamento, embora não fosse um modelo de virtudes, era, mesmo assim, muito agradável. As instalações eram amplas e funcionais.
 

Havia duas portas de armas, uma virada a leste e a outra a oeste e um amplo espaço, onde se incluía uma parada muito limpa.

 

 

Do lado esquerdo, havia uma casa com os quartos dos dois sargentos, o bar de oficiais, sargentos e furriéis, um acanhado posto de transmissões e de cripto, um forno de padeiro, a casa com os quartos dos oficiais, a messe de oficiais, sargentos e furriéis, uma cozinha rudimentar de aspecto pouco limpo ou agradável, o refeitório dos soldados, bastante gorduroso, nada confortável e apenas coberto por chapas de zinco, o depósito dos géneros alimentares onde havia frigoríficos a funcionar a petróleo, uma cantina, uma caserna pré-fabricada dormitório dos soldados, uma casa coberta de colmo que servia para trabalhos diversos, um gerador de electricidade, a oficina e o parque das viaturas, um paiol (de más recordações para os camaradas que lá estiveram presos), um local com gasolina para helicópteros, um posto de enfermagem e o posto de vigia.

 

 

No lado oposto, havia um posto de vigia, a secretaria, um pré-fabricado dormitório dos furriéis, as casernas dormitório dos soldados em edifícios pré-fabricados, que não deviam ter mais do que três anos e umas acanhadas casas de banho.


Para além destes equipamentos, ainda tínhamos uma pista em terra batida para pequenos aviões, um campo de futebol, um campo de voleibol, uma plantação de abacaxis e um pouco mais tarde uma piscina.

 


Era um local agradável, a 1240 metros de altitude, com muito verde, água e largos horizontes.


Fora do quartel, a diminuta localidade e a comunidade civil faziam lembrar em alguns pormenores a época colonial dos anos 50. A antiga casa do administrador de posto, que estava desabitada, era uma construção, segundo creio, dos começos do século, com planta quadrada, com uma boa área coberta, que a protege das fortes chuvadas e fornece um bom local de permanência, nas horas de calor. Nas traseiras havia um grande cercado com duas frondosas mangueiras.

 

 

Em pleno interior de África e sem estradas, era um oásis e um luxo que poucos tinham na metrópole.


O clima, que era excelente, era menos quente do que em Sacassange e tinha também muitas semelhanças com o da metrópole.

publicado por Alto Chicapa às 12:58

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Quarta-feira, 1 de Outubro de 2008

35- As sentinelas

(continuação de 34- Alto Chicapa)

 


 

Este texto contém algumas frases que são impróprias, para menores ou pessoas sensíveis.

 

Voltando às noites, que eram normalmente muito escuras, mas onde se via tudo, reparei que à distância de centena e meia de metros havia uma sentinela a fumar no alto da vigia. Via-se perfeitamente o momento em que estava a puxar uma fumaça e a ponta do cigarro mais brilhante, tão brilhante que dava para adivinhar os contornos da cara.
 

Aproximei-me, e disse-lhe:
- Ouve lá, oh B.!
- Queres ir encaixotado para Trás-os-Montes?
- Os turras abrem-te dois buracos na cabeça, um à frente e o outro atrás!
- És um autêntico anjinho, ao menos respeita os outros e a segurança quando estás de sentinela!
Na manhã seguinte, o rapaz encheu-se de razões e como não gostou nada daquela chamada de atenção foi queixar-se ao alferes responsável pelo seu grupo de combate que acabou por se zangar e ainda afirmou com ares de ofendido que ali quem mandava era ele.


Uma outra vez, encontrei as sentinelas a jogar às cartas. Disse-lhes qualquer coisa, que não me recordo, e rasguei-lhes as cartas. Zangaram-se como era obvio, devolveram-me ameaças, mas ignorei-as, e deixei-os orgulhosamente sós.


Ainda, uma outra vez, mas esta foi muito penosa para mim, não sei os motivos do meu desgosto naquele momento, sei que fiquei arrependido de o ter feito. Enquanto o moço dormia profundamente e na paz dos anjos, levei-lhe a arma para o meu quarto. Hoje, tenho a certeza que o deveria ter acordado. Concretamente, não conhecia a vida do rapaz nem os seus problemas, só sabia que pertencia ao pelotão do alferes C. De manhã, apareceu no meu quarto. Garantiu-me que tinha apanhado um valente susto e uma grande lição. Recebi dele provas de um grande carácter e uma grande lição de humildade. Onde estiveres, bem hajas.

 

Finalmente, um outro caso, este por volta das 4 horas da manhã (quase dia em África), com um elemento do meu grupo de combate.
- Então A. que se passa?
- Alferes não diga nada ao Capitão, só estava a esgalhar uma pívia à maneira.
- Isso, eu vi, cheguei até aqui, nem davas por mim, os outros levavam-te ao colo.
- Oh meu alferes, peço desculpa, estava a olhar para a loiraça do calendário e comecei a lembrar-me daquela moça “explosiva” do cinema em Henrique de Carvalho, moreninha, calças justas, um valente papo e um par de mamas sem sutiã a quererem saltar para fora da camiseta.
- Dava-lhe cá uma martelada e enterrava-a até aos tomates e tenho a certeza de que ela se rebolaria a pedir mais.
- Repara A., o capitão não é para aqui chamado e também percebi o motivo do teu desatino, mas podemos levar com uns balázios se não estiveres atento e compreende que estávamos todos a confiar em ti.
- Alferes, tem toda a razão, somos amigos e não volta acontecer, mas acredite …, para mim, aquela mulher é só cona!


O que acabei de relatar, foram casos isolados e não aconteciam com muita frequência, como eventualmente poderá parecer nesta narrativa.

 

Pelo contrário, com a velhice, com o isolamento do posto de vigilância e com alguns momentos de arrepio, a sentinela já impunha a si própria uma auto defesa intermédia e interessante, colocava pequenas e engenhosas armadilhas, até criava um ponto de diversão que tornava o intruso em alvo fácil, ou pedia a ajuda de um amigo para colaborar no serviço.


Não estou arrependido de ter estado naquela tropa.

 

Valeu a pena viver aqueles momentos e ver a camaradagem de muitos e dos soldados que estavam sempre voluntários para tudo, mesmo vivendo em condições menores e com muito pouco dinheiro.
 

publicado por Alto Chicapa às 13:39

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Quarta-feira, 24 de Setembro de 2008

34- Alto Chicapa

(continuação de 33- Alto Chicapa, a minha nova residência)

 

Neste Alto Chicapa, a única população branca, além da tropa e do administrador, um miúdo ainda de borbulhas na cara como nós, eram os funcionários da OPDVCA / DGS, que raramente eram vistos neste local e dois comerciantes, um deles o Sr. Capela.

 


Em torno deste núcleo social havia a aldeia junto ao posto, aldeia dos GES (grupo 305 e 306), alguns elementos de Milícias, os Cipaios, os Sobas e ocasionalmente alguns “guerrilheiros” de um grupo de flechas.


Os GES (Grupo Especial de Combate) eram a tentativa da tropa colonial ter uma espécie de tropa profissional local recrutada nos quimbos. Estes eram maioritariamente fracos “militares” sem preparação ou equipamento e nada cuidados. Vestiam camuflados muito velhos e rotos ou roupa diversa pouco cuidada. Viviam com as suas famílias numa sanzala junto ao quartel. Tinham a seu favor, o excelente conhecimento das matas locais, dos trilhos e cursos de água. Viviam da guerra combatendo mais ou menos ao lado da tropa. Digo mais ou menos, porque alguns faziam ausências prolongadas na mata ou por jogo duplo ou para a recolha de diamantes. Diziam, que eram o equivalente aos Comandos, mas nestes, houve certamente um grande engano porque eram apenas umas pobres milícias.


As Milícias eram grupos de paramilitares recrutados localmente e enquadrados pelo exército.


Os Cipaios eram a polícia da Administração de Posto, recrutados entre a população local.


Os Sobas eram personagens, em minha opinião, decorativas que se limitavam a serem intermediários entre os seus da sanzala e a administração do posto.


Os Flechas eram outra força colonial, formada, treinada e dirigida pela DGS/PIDE segundo o modelo dos “seolous scouts” da Rodésia. Eram, recrutados entre indivíduos com ligações ao IN ou dissidentes, bons guerrilheiros, bem preparados e temidos. Considerados bons pisteiros e muito eficazes na guerrilha devido às informações paralelas que recebiam da DGS e por viverem e conhecerem muito bem a mata. Eram comandados operacionalmente pelo inspector da DGS, Óscar Cardoso.


O posto administrativo estava estrategicamente situado entre várias aldeias. Lembro-me ainda do nome de algumas, como por exemplo, Samunge, Samuchima, Cambatxilonda, António Cavula, Nandonge, Muaxiteca, Muachiava, Muambumba, Samuange.

 


Não me dei muito mal com a tropa, mas naqueles dias mais difíceis abandonava-a imediatamente sem qualquer hesitação ou saudade.

 


Mesmo com a minha inexperiência de menino, não tive de me impor para merecer o respeito do pelotão. Adaptei-me com alguma facilidade às inseguranças, aos medos, às limitações e às exigências, enfim, tive sorte, fui aceite. Ah! … e quanto ao rancho, também era um pouco “lateiro”.


Felizmente, a nossa vida no Alto Chicapa era substancialmente diferente daquela que tínhamos tido em Sacassange, mesmo estando mais longe de tudo e isolados.


O abastecimento dos frescos, quando o estado do tempo e o estado da pista de aviação o permitiam, era feito semanalmente por um pequeno avião mono motor.

 

 

Os restantes géneros eram entregues tempos a tempos por uma viatura civil ou militar.


A nossa actividade nos grupos de combate, distribuía-se por patrulhas e operações regulares de 5 a 6 dias na mata, acções de apoio às populações (enfermagem, obras e infra-estruturas) e permanência em destacamentos.


As noites, também eram um mundo incrível de vida. Havia, quase sempre, um vasto manto escuro manchado de estrelas de uma nitidez espantosa onde se viam, milhares de asas que se agitavam e ondulavam de sons. Ao longe, ouviam-se os mais variados ruídos próprios da selva.

 

Com a nossa experiência, sabíamos que, enquanto houvesse esta sinfonia à nossa volta e toda esta actividade, havia segurança.


Como em África anoitece muito cedo, geralmente por volta das 17 horas, voltei aos meus hábitos da metrópole, um pequeno passeio ou caminhada ao princípio da noite. O Alto Chicapa tinha todas essas potencialidades e proporcionava-me esse prazer. Fazia-o sempre que podia, com muito agrado, mas sem as horas ou os locais marcados, tal e qual como a guerrilha me tinha ensinado, não passar, duas vezes, à mesma hora ou no mesmo sítio.
 

publicado por Alto Chicapa às 11:13

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