Segunda-feira, 27 de Outubro de 2008

45- Operação "Pato 7212", sexto dia

(continuação de 44- Operação "Pato 7212", quarto e quinto dia)

 

Ao sexto dia, pelas treze horas, chegámos ao ponto de recolha numa zona plana e de vegetação dispersa.

 

Patrulhámos em círculo a área envolvente e avançávamos o máximo possível ao longo da picada.

 

 

O deserto humano e a ausência de vestígios mantinham-se.

 

Tal como tinha acontecido na largada, a recolha era feita por três ou quatro Unimogues ou por uma Berliet e dois Unimogues e mais cinco militares para protecção às viaturas.

 

Sentia-me muito à vontade e sem medo em plena selva africana, inclusive até conseguia compensar alguma alimentação enlatada por outro tipo de alimentos mais frescos e calóricos, mas as deslocações na picada alteravam de forma inexplicável o meu estado de anímico e eram o momento que mais temia.


A estadia na mata transformava a nossa aparência. Ficávamos irreconhecíveis, mal cheirosos, a barba por fazer, cansados, mal alimentados e carentes de um sono descansado numa cama.
Quando estávamos integrados no grupo e a conviver diariamente não se prestava atenção à transformação, íamo-nos habituando à degradação progressiva da nossa imagem, e só dávamos conta dos estragos reais quando regressados ao quartel íamos a um espelho.
 

(a seguir - formigas térmitas e duas matacanhas)

 

publicado por Alto Chicapa às 09:55

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Domingo, 5 de Outubro de 2008

37- Primeiro passeio pelo exterior

(continuação de 36- O nosso aquartelamento)


No primeiro passeio que dei no exterior do quartel cruzei-me com um jovem, bem apresentado, talvez acima do normal para aquele meio. Tinha vindo buscar um papel com uma autorização do chefe de posto para poder transitar na mata.

 


Era um procedimento mais ou menos habitual nesta zona, mas o que me chamou a atenção era o que ele estava a fazer, a tratar da higiene oral, com um pequeno pau.


Não tinha água nem a nossa pasta dentífrica.


Este homem tinha uma fiada de magníficos dentes de esmalte branco, perfeitos, que contrastavam com a pele escura da cara. O pau que fazia de escova, com um comprimento mais ao menos de um pequeno lápis, tinha uma das extremidades afiada, para limpeza das cavidades e entre os dentes, e na outra extremidade, uma autêntica escova, constituída pelas fibras soltas da própria madeira que friccionava nos dentes.


Arranjei um pretexto para meter conversa e transmiti-lhe a minha ignorância, a surpresa e o espanto. Acho que se sentiu confiante. Ficou comunicativo e até me pareceu que se esbateram algumas barreiras sociais. Falava o português, bem melhor do que eu estava à espera.

 

Contou-me a história da escova de dentes, a razão da visita a uns familiares na sanzala do Cucumbi, a sua posição como professor / monitor na região, pago pelo estado português, e ainda a sua descendência de um antigo chefe de aldeia, quando ainda os havia com muita influência, dizia.


Ficámos amigos, quase verdadeiros, do tipo instantâneo.

 

Penso que foram as diferenças sociais que nos ligaram ao essencial. Nunca esperámos nada um do outro, apenas o privilégio de beber umas cervejas ao sábado na loja do Sr. Capela e estar à conversa pela noite dentro.

 

O P. (não é P. de professor) nunca me questionou sobre a nossa actividade militar em Angola, mas gostava de saber coisas de Portugal e em especial do meu envolvimento na vida académica em Lisboa. Tudo lhe contei sem omissões, inclusive a minha posição perante a política e aquela guerra. Em dado momento, já com meia dúzia de cervejas saboreadas, confidenciou-me que tinha um sonho, se um dia fosse para Portugal, ia perder-se de amores por uma mulher branca, mas peluda.


Passados alguns dias, encontrei-o em plenas funções, na sua escola, na Sanzala do Camachilonda onde me fez contar uma história, das de Portugal, daquelas para miúdos (contei a história da padeira de Aljubarrota, que não era bem para miúdos, mas adoraram) e uns meses depois em António Cavula, onde estava um seu familiar com a categoria de monitor, embora também fosse um misto de professor e enfermeiro, fez-me repetir a história.


Ao longo deste documento vou contar como, em Fevereiro de 1974, este amigo me mostrou porque era verdadeiro, a forma como de forma desinteressada ajudou o meu grupo de combate ou me protegeu nas minhas viagens solitárias, do Alto Chicapa ao nosso destacamento de António Cavula e vice-versa.


Nessa data, já sabia que o P. e o primo estavam próximos do MPLA e que a população maioritariamente apoiante da UNITA, tinha familiares guerrilheiros. Entre os mais velhos também havia alguns simpatizantes da FNLA.


Ele e o primo, foram amigos verdadeiros, e para toda a vida, que deixei e não voltei a ver, no entanto aparecem assim, acidentalmente tirados do fundo de uma qualquer gaveta ou da minha memória onde estão arquivados, à luz do mais genuíno e feliz dos meus dias nas relações entre as pessoas.
 

publicado por Alto Chicapa às 10:25

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Quarta-feira, 1 de Outubro de 2008

35- As sentinelas

(continuação de 34- Alto Chicapa)

 


 

Este texto contém algumas frases que são impróprias, para menores ou pessoas sensíveis.

 

Voltando às noites, que eram normalmente muito escuras, mas onde se via tudo, reparei que à distância de centena e meia de metros havia uma sentinela a fumar no alto da vigia. Via-se perfeitamente o momento em que estava a puxar uma fumaça e a ponta do cigarro mais brilhante, tão brilhante que dava para adivinhar os contornos da cara.
 

Aproximei-me, e disse-lhe:
- Ouve lá, oh B.!
- Queres ir encaixotado para Trás-os-Montes?
- Os turras abrem-te dois buracos na cabeça, um à frente e o outro atrás!
- És um autêntico anjinho, ao menos respeita os outros e a segurança quando estás de sentinela!
Na manhã seguinte, o rapaz encheu-se de razões e como não gostou nada daquela chamada de atenção foi queixar-se ao alferes responsável pelo seu grupo de combate que acabou por se zangar e ainda afirmou com ares de ofendido que ali quem mandava era ele.


Uma outra vez, encontrei as sentinelas a jogar às cartas. Disse-lhes qualquer coisa, que não me recordo, e rasguei-lhes as cartas. Zangaram-se como era obvio, devolveram-me ameaças, mas ignorei-as, e deixei-os orgulhosamente sós.


Ainda, uma outra vez, mas esta foi muito penosa para mim, não sei os motivos do meu desgosto naquele momento, sei que fiquei arrependido de o ter feito. Enquanto o moço dormia profundamente e na paz dos anjos, levei-lhe a arma para o meu quarto. Hoje, tenho a certeza que o deveria ter acordado. Concretamente, não conhecia a vida do rapaz nem os seus problemas, só sabia que pertencia ao pelotão do alferes C. De manhã, apareceu no meu quarto. Garantiu-me que tinha apanhado um valente susto e uma grande lição. Recebi dele provas de um grande carácter e uma grande lição de humildade. Onde estiveres, bem hajas.

 

Finalmente, um outro caso, este por volta das 4 horas da manhã (quase dia em África), com um elemento do meu grupo de combate.
- Então A. que se passa?
- Alferes não diga nada ao Capitão, só estava a esgalhar uma pívia à maneira.
- Isso, eu vi, cheguei até aqui, nem davas por mim, os outros levavam-te ao colo.
- Oh meu alferes, peço desculpa, estava a olhar para a loiraça do calendário e comecei a lembrar-me daquela moça “explosiva” do cinema em Henrique de Carvalho, moreninha, calças justas, um valente papo e um par de mamas sem sutiã a quererem saltar para fora da camiseta.
- Dava-lhe cá uma martelada e enterrava-a até aos tomates e tenho a certeza de que ela se rebolaria a pedir mais.
- Repara A., o capitão não é para aqui chamado e também percebi o motivo do teu desatino, mas podemos levar com uns balázios se não estiveres atento e compreende que estávamos todos a confiar em ti.
- Alferes, tem toda a razão, somos amigos e não volta acontecer, mas acredite …, para mim, aquela mulher é só cona!


O que acabei de relatar, foram casos isolados e não aconteciam com muita frequência, como eventualmente poderá parecer nesta narrativa.

 

Pelo contrário, com a velhice, com o isolamento do posto de vigilância e com alguns momentos de arrepio, a sentinela já impunha a si própria uma auto defesa intermédia e interessante, colocava pequenas e engenhosas armadilhas, até criava um ponto de diversão que tornava o intruso em alvo fácil, ou pedia a ajuda de um amigo para colaborar no serviço.


Não estou arrependido de ter estado naquela tropa.

 

Valeu a pena viver aqueles momentos e ver a camaradagem de muitos e dos soldados que estavam sempre voluntários para tudo, mesmo vivendo em condições menores e com muito pouco dinheiro.
 

publicado por Alto Chicapa às 13:39

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Domingo, 21 de Setembro de 2008

33- Alto Chicapa, a minha nova residência

(continuação de 32- O que é que eu faço aqui?)

 

Encontrava-me de novo entre nativos, quiocos (tutchokwe) e minungos (tuminungu) de língua nativa tchokwe, a cerca de 300 kms da cidade de Henrique de Carvalho, 6 a 10 horas, entre picadas e asfalto, numa Berliet e um Unimogue ou a 55 minutos num avião mono motor.


Enfim, tudo era, mais uma vez, novo para mim, tirando a mata que já conhecia.


A experiência adquirida na 1ª parte da nossa comissão, em Sacassange e no destacamento do Canage, levou-me a ser mais perfeccionista e um pouco mais calculista. Dispensava os problemas e queria a todo o custo ir direitinho para a “peluda” (vida civil).


Estávamos numa terra que não era a nossa. Sabia que, pelo evoluir da guerra e pelas reais fraquezas nos movimentos de libertação, o regresso só podia depender essencialmente de nós.


Depois do que já tinha vivido em África, sabia que a receita, para todos nós, era estarmos ocupados e o mais longe possível da boa vida que só trazia problemas.


Mas, nem tudo era assim tão simples. Era necessária uma grande presença de espírito e muita capacidade de encaixe para enfrentar as situações adversas e as fraquezas próprias de um ser humano.


É por estas coisas, que eu sinto, que tudo isto, foi uma escola de vida, onde grandes valentões ficaram sem coragem e frieza alguma e indivíduos por quem à primeira vista não se dá nada por eles, revelaram-se verdadeiros senhores de sangue frio e coração quente.


Tínhamos de ser duros no momento exacto, mas não era necessário chegar à dureza cega como vinha acontecendo com alguma frequência. Até mesmo entre militares graduados e homens feitos, alguns não sabiam perdoar, não faziam por esquecer situações menos correctas dos outros e não conseguiam manter as relações adequadas e equilibradas com todas as pessoas.

 

Efectivamente, não era fácil, e era a pior das guerras.
 

Por exemplo, a rigidez do nosso capitão, comandante da companhia, impedia mais do que uma camaradagem de ocasião. Era um homem mal disposto, complexo, com alguns traumas ou medos e não sabia perdoar. Resolvia tudo com a punição.

 

Julgo que ainda há, por aí, muito boa gente com razões de sobra para se lamentar com certas atitudes de outros tempos, mas história é história e o homem tem sempre o direito a redimir-se e vou mais além, águas passadas não movem moinhos.
 

Em minha opinião, os oficias, onde estou incluído, não estão isentos de culpas, cada um vivia praticamente para si próprio, para as cartas que recebia e enviava, para o pelotão, para as saídas para a mata, para os trabalhos com obras de construção nas aldeias, para os destacamentos, para ser o melhor e acima de tudo com a preocupação da sobrevivência a qualquer preço.


Onde se ia vendo mais espírito de grupo e de camaradagem era ao nível dos furriéis.
 

publicado por Alto Chicapa às 15:20

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Domingo, 14 de Setembro de 2008

30- Chuva e trovoada

(continuação de 29- Dois irmãos de mães diferentes)

 

As primeiras chuvas e as trovoadas dos últimos dias daquele mês de Agosto de 1972 eram um sinal da proximidade da época das chuvas.


Inicialmente, as chuvadas tropicais eram abundantes, mas muito breves, depois seguia-se um sol forte que nos aquecia e enxugava tudo rapidamente.


Mas um dia, aconteceu o que não conhecíamos, a chuva manteve-se durante mais tempo, muito persistente e forte. A área circundante e o destacamento ficaram cheios de lama escorregadia e barrenta. A trovoada e os relâmpagos eram tão fortes e intensos que pareciam estar a poucos metros. O chão tremia, como nunca o tinha sentido. Também tinha escurecido repentinamente e a barulheira continuava infernal. A carga de água foi tão intensa, que ajudou a acabar de encher os três bidões de 200 litros.


Só a meio da noite o tempo começou a mudar e a chuva a amainar.


Durante a noite, lia, ouvia música gravada, a Emissora Nacional e a BBC que chegavam com uma potência razoável em ondas curtas. Ouvia também, algumas rádios turras, uma delas a Maria Turra, que emitia a partir da Zâmbia. Falavam algumas vezes de nós, diziam coisas de espantar e exageravam muito. Por exemplo, uns dias antes da nossa mudança para o Alto Chicapa, já tínhamos sido vítimas de emboscadas, das quais não escapámos e em que as picadas ficaram mais vermelhas do nosso sangue.
 

publicado por Alto Chicapa às 11:21

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Quinta-feira, 31 de Julho de 2008

18- Entregues a nós próprios

(continuação de 17- Os maçaricos)

 

Em Abril de 1972, já estávamos entregues a nós próprios. Aproximava-se o final da época das chuvas (Outubro a Abril), uma das duas estações do ano em Angola, a outra é o cacimbo, a estação seca mas com grandes amplitudes térmicas.


No meu grupo, havia três furriéis com um grande sentido de equipa, muito dinâmicos, alegres e acima de tudo uns bons companheiros (camaradas como se dizia na tropa). Nos últimos 34 anos, mesmo com contactos e encontros regulares entre nós, quero, mesmo assim, recorda-los com amizade. Um bem-haja, ao Canossa (José Sousa Canossa), ao Gomes (Alfredo Carmo Gomes) e ao Santos (José Manuel Moreira Santos).

 


Quase todo o pessoal do meu grupo de combate estava solteiro.
Tinham idades entre os vinte e os vinte e dois anos. O único velhote no grupo, como diziam, era eu que já ia a caminho dos vinte e quatro anos.


A minha passagem por Sacassange foi penosa. Deixei por lá algumas lágrimas e angústias. Foi aí que senti as minhas primeiras revoltas e consequentemente uma lenta e difícil adaptação.


Diariamente, fazíamos a protecção às máquinas, aos trabalhos e aos empregados da empresa Tecnil que abria a estrada, Luso / Lucusse, da JAEA (Junta Autónoma das Estradas de Angola).


Naquela guerra de protecção o nosso dia-a-dia era mais do que conhecido, desde as deslocações, aos horários, às posições no terreno, ao número de elementos que compunham o grupo e ao armamento disponível, tudo era previsível e conhecido.


Chamavam-nos, a tropa macaca.


A nossa interligação com as pessoas e com a organização dos trabalhos era normalmente nula.


As posições que ocupávamos na mata ou junto à picada iam mudando rotineiramente conforme o avançar das frentes de trabalho.
No dia seguinte todos sabiam os locais por onde a tropa ia passar ou se iria instalar novamente.

 


Bem, estávamos a ajudar as populações e a fazer protecção militar a um troço de via asfaltada de uma grande rede de estradas no Leste de Angola, uma envolvente da Zona Militar Leste, em áreas de pobres recursos materiais e de fraca ocupação humana, ligando Malange, Silva Porto, Serpa Pinto, Neriquinha, Gago Coutinho, Luso, Dala, Henrique Carvalho, Veríssimo Sarmento e Portugália, numa extensão de mais de 2.000 kms.


A par deste itinerário principal, era do nosso conhecimento que ainda estavam projectados itinerários secundários, com cerca de 2.500 kms, a ligar à estrada principal:
• Da Lunda, por Henrique de Carvalho, Nova Chaves e Teixeira de Sousa;
• Do Moxico, por Silva Porto e Gago Coutinho;
• Do Cuando-Cubango;
• Do Cubango;
• Do Cuito; e
• Do Guando, por Gago Coutinho.

 

Além destas vias alcatroadas, o Comando da ZML (Zona Militar Leste) tinha proposto a construção de mais duas estradas militares:
• Alto Chicaga - Cangumbe (+/- 130 kms); e
• Umpulo - Mumbué (+/- 150 kms).

 

Percebia-se que esta rede, de vias, num total de mais de 4.000 kms, era importante para o desenvolvimento da região e uma valiosa ajuda nas deslocações militares. Diminuíam o perigo das minas, proporcionavam mais meios contra a guerrilha e vantagens óbvias para a manobra militar.
 

Neste ano, estavam a trabalhar no Leste de Angola cinco empresas com a capacidade de construção anual de 1000 km de estrada asfaltada.
 

Nós, os militares, colaborávamos na defesa das pessoas e dos trabalhos de construção da estrada até ao Lucusse numa zona muito complicada e lado a lado com um corredor de passagem de guerrilheiros do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) vindos da Zâmbia, com passagem pelo Cacolo, e em direcção ao Norte de Angola.

 

 

Eram conhecidos e estavam identificados 3 esquadrões na zona, o Voina, o Vitória e o Sakembo (1 esquadrão tinha 100 a 150 efectivos).
Chamavam-lhe a Rota do Luena ou Agostinho Neto.

 


Neste cenário de guerra do Leste de Angola, onde três movimentos de independência lutavam pela hegemonia na região, acordou-se numa estratégica e tacitamente num pacto de não agressão entre o exército e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola). Esta medida também ajudou as NT (nossas tropas) e as operações militares, que foram especificamente preparadas para enfraquecer os outros dois movimentos, FNLA e MPLA, e faze-los recuar o mais possível para a fronteira prevista para a retirada, a Zâmbia. Chamavam-lhe o acordo dos madeireiros e segundo diziam, teria sido iniciado em 1969/70 pelo Dr. Jonas Savimbi, os Generais Costa Gomes e Bettencourt Rodrigues e um grupo de madeireiros com interesses na zona.

 


O pessoal afecto à construção da estrada demonstrava em cada momento pouca amizade e tolerância pela tropa. Organizava a seu dia a dia como muito bem lhe apetecia e sempre em função de meios próprios. Não tinham problemas com as deslocações, com as horas e ignoravam a nossa protecção. Estas atitudes nunca foram uma surpresa para mim, pois estava informado e avisado que alguns faziam a agulha para os dois lados.

 

A maior parte dos trabalhadores e capatazes eram oriundos de Angola, da metrópole e de Cabo Verde. Tinham um nível cultural muito baixo e eram, em minha opinião, muito pobres de sentimentos.


Sabia que não podia contar com eles e que a confiança teria de ser calculada e reduzida.
 

É certo que também não os conhecia bem, mas pelo que observava diariamente tinha razões para continuar a duvidar do seu comportamento relativamente ao exército.


Por todos os motivos, a nossa missão era muito ingrata, estávamos numa guerra de posição, presos no quartel, no destacamento ou estacionados na mata junto à picada. Estávamos diariamente à mercê da surpresa e também éramos alvos fáceis dos guerrilheiros que se movimentavam como queriam e com o conhecimento das florestas que nos rodeavam.
 

publicado por Alto Chicapa às 11:08

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Terça-feira, 1 de Julho de 2008

14- A partida para o leste de Angola

(continuação de 13- Saída à cidade de Luanda)

 

A partida para Sacassange nos arredores da cidade do Luso no Moxico, leste de Angola estava marcada e era inevitável.


As vacinas estavam todas em ordem e efectivamente parecia que só não estávamos imunes ao paludismo.

 


Em dia que já não consigo determinar (talvez dia 09-02-1972), saímos, para uma viagem com cerca de 1000 km, primeiro do Grafanil em direcção a Nova Lisboa, +/- 600 km.

 

Os preparativos começaram logo a seguir ao jantar e de madrugada partimos, militares e haveres em velhas camionetas civis.


Já não tenho grandes recordações desta etapa da viagem. Sei que rolámos por estradas pouco cuidadas quase ininterruptamente durante horas e até à madrugada do dia seguinte. Tenho uma leve ideia de termos passado por Viana, Catete, Dondo, Quibala, Alto Hama e Nova Lisboa (onde dormimos).

 

 

Ficaram-me na retina as paisagens exóticas que eram de uma elevada beleza, mas ao fim de 23 horas, de mercadoria em camião, comecei a pensar que o preço que iria pagar para poder voltar um dia a Portugal iria ser realmente demasiado.


Foi uma viagem desumana e apocalíptica até Nova Lisboa.
 

publicado por Alto Chicapa às 14:27

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Quinta-feira, 26 de Junho de 2008

13- Saída à cidade de Luanda

(continuação de 12- O Grafanil)


Na minha primeira saída à cidade de Luanda fui em primeiro lugar visitar um amigo do meu pai, o Sr. Manuel Augusto Frade que vivia no Bairro de Alvalade e trabalhava numa empresa de telecomunicações, a Companhia Portuguesa Rádio Marconi.


No centro da cidade, passei na Praça de Luanda mais conhecida por Mutamba e identifiquei-me com os machimbombos, os autocarros de Luanda. Havia uns já muito velhos, mas outros eram novos, modernos, e pareciam até confortáveis.

 

 

 

Depois, fui passear muito perto da baía de Luanda. Sentei-me numa esplanada (não me recordo do nome Império ou talvez Versalhes ?) já com outros militares por companhia onde bebemos umas Cucas (cervejas) acompanhadas com pratinhos de camarões que eram o equivalente aos tremoços em Portugal.

 


Havia sempre muita gente nesta zona central da cidade.


Muitos homens usavam camisa transparente, as mulheres pareciam muito bem vestidas para uma simples ocasião de andar na rua, outras estavam exageradamente pouco vestidas e havia ainda as belas miúdas, as que chamavam de cabritas, de cor “canela”, lindas, vestidas de mini-saia com tecidos garridos e justos a realçar as formas esculturais dos belos corpos já bronzeados, o ventre liso, os seios de bicos excitados, o traseiro era marcado por calcinhas minúsculas e tudo o resto nem era preciso adivinhar.


A população branca local com uma vida muito própria e aparentemente muito endinheirada, rodeada de criados dava-se a um novo-riquismo flagrante, que o demonstrava por tudo e por nada, mas quase sempre de uma forma ignorante. Diziam com desprezo, que os militares nada tinham a ver com eles, éramos do puto (nome dado a Portugal) e tínhamos vindo para estar no mato.


Para quem acabava de sair de Portugal e não voluntariamente, sentia alguma mágoa quando se era olhado com indiferença e nalguns casos com hostilidade.

 

É certo que já tinham decorrido vários anos sobre a cruel vingança dos anos 60, que a guerra estava longe e que sentiam menos a necessidade de protecção.
 

As revistas angolanas estavam cheias de fotografias de bailes, festas sociais, eleições de misses e muitos automóveis do tipo americano.
 

Por outro lado, havia muita pobreza e até miséria exposta. Uns vadiavam ou pediam esmola, outros vendiam lotaria, jornais e objectos esculpidos em madeira e outros, senhores de camisa e casaco muito sebento trocavam escudos por angolares com mais 30%.

 


Fomos jantar a um belo restaurante na ilha de Luanda do qual também já não me recordo do nome (talvez Horizonte?). Ficava num promontório com praia de um lado e do outro.

 

 

Comi, por 50 angolares com gorjeta incluída, lagosta grelhada com ervilhas e mais qualquer coisa, bebi vinho verde e no final um whisky.


A temperatura mantinha-se elevada.


Acabámos a noite entre as águas calmas e deslumbrantes da baía de Luanda com majestosos edifícios iluminados, encimados por reclames multicolores, o edifício do Banco de Angola, os andares do Banco Comercial de Angola, os grandes edifícios dos hotéis, o edifício de apartamentos o “treme treme” (local muito frequentado pelos militares em férias ou regressados do mato), o porto de Luanda repleto de navios, e uma boîte onde havia espectáculo de variedades e de striptease de categoria duvidosa.


Beberam-se mais uns whisky e a noite passou-se depressa e de maneira agradável.
 

publicado por Alto Chicapa às 15:37

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Terça-feira, 17 de Junho de 2008

11- O desembarque

(continuação de 10- Estávamos muito perto de Angola)

 

Quando o avião parou e se abriu uma das portas sentiu-se uma onda de calor de tal modo brusca que parecia que uma fornalha se tinha aberto de repente.


O desembarque foi normal, mas na zona civil da aerogare deu-se o impensável, fomos presenteados com bandos de miúdos que pareciam todos iguais, pedinchavam e queriam transportar as malas e os sacos.

 


No exterior, havia uma fila de camiões preparados para nos levarem ao campo militar do Grafanil situado nos arredores, a norte de Luanda.


Durante o percurso, que durou pouco mais de meia hora, fiquei, com uma visão muito confusa dos locais. Tudo parecia ser muito diferente de Portugal.

 


As pessoas, no meu modo de ver, pareciam rigorosamente iguais, a vegetação era escassa e as árvores tinham copas enormes, o chão era poeirento e vermelho, o trânsito automóvel incrivelmente desordenado e havia muita pobreza.


A cor do angolano, em Luanda, era bem diferente daquela que eu estava à espera. Apresentava uma tonalidade acastanhada não muito carregada e com algum brilho.


Era um ambiente novo, diferente, exótico e muito estranho, mas ao mesmo tempo parecia fantástico.
 

publicado por Alto Chicapa às 15:22

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Segunda-feira, 9 de Junho de 2008

10- Estávamos muito perto de Angola

(continuação de 9- Lisboa a perder-se de vista)

 

Por volta das sete horas, do dia 5 de Fevereiro de 1972, foi servido um pequeno-almoço, à base de fiambre, pão, manteiga, croissant, café com leite, compota, geleia e mais qualquer coisa com ovo.


Às 8 horas, estávamos muito perto de Angola, já se via o mar muito bem e a altitude era reduzida.


Pouco tempo depois começámos a sobrevoar a orla marítima formada por retalhos onde o verde da vegetação contrastava com uma terra avermelhada.

 

 

 

Seguiram-se os arredores de Luanda com uma extensa zona de bairros pobres e mais adiante a cidade onde já aparecem alguns edifícios modernos implantados em zonas de construções improvisadas igualmente de aspecto muito pobre.

 


Vista do ar, a cidade de Luanda é deplorável e de grandes contrastes. É desordenada e as ruas sem passeios não têm qualquer plano de urbanização.

 

 

publicado por Alto Chicapa às 11:27

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Sexta-feira, 6 de Junho de 2008

9- Lisboa a perder-se de vista

( continuação de 8- Dos momentos passados aos momentos do embarque)

 

Já no ar e com o espectáculo de uma Lisboa iluminada a perder-se na distância, passou-se para uns ligeiros reflexos, que só poderiam ser o mar, e rapidamente para uma massa cinzenta escura de nuvens.


Segundo informação da cabine de pilotos, o avião continuaria a ganhar altitude até atingir os doze mil metros.


Por volta das 3 horas (05-02-1972) somos avisados pelo comandante, que iria haver alguma turbulência durante a passagem por uma zona de tempestade. De facto, algum tempo depois, o avião começava a ser sacudido com grandes deslocações para baixo e para cima e as extremidades das asas a vibrarem.

 

Lá fora, via-se perfeitamente como se fosse dia e as nuvens eram rasgadas frequentemente por enormes clarões. Um espectáculo espantoso.


Poucos deram pela tempestade.

 

Eu, que aos poucos me ia enrolando numa manta, acabei também por adormecer.
 

publicado por Alto Chicapa às 15:37

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